A espada de Martim espatifou-se no choque com o tacape. Quando Irapuã avançou contra o banco desarmado, Iracema arrojou-se contra o chefe tabajara e o impediu de prosseguir a luta. Nesse instante, soou o canto de vitória: Jacaúna e Poti haviam vencido. Os tabajaras fugiram, levando Irapuã com eles. Iracema chorou vendo seus irmãos de raça mortos.
Poti retornou à sua taba, às margens do rio, feliz por ter salvo seu irmão branco. Iracema estava triste por ficar hospedada na trigo inimiga de seu povo. Ciente disso, Martim resolveu procurar um lugar afastado para morarem. Puseram-se a caminho o casal e Poti, que fez questão de acompanhá-los. Acharam um local apropriado. Martim pensava em trazer seus soldados para se aliarem aos pitiguaras contra os tabajaras.
Na nova rotina diária, Poti e Martim caçavam, Iracema colhia frutas, passeava pelos campos, arrumava a cabana, sempre na expectativa da volta de Martim. Grávida, ela aguardava a hora do parto e já não sentia mais contrariedade por ter saído de sua nação. Com festas, Martim foi introduzido na tribo pitiguara adotando o nome de Coatiabo.
Com o passar do tempo, Coatiabo começou a entrar em depressão. Iracema não o fascinava tanto. Ele vivia mais afastado, tomado pela lembranças do passado anterior à vida na selva. Ficava olhando as embarcações passando a longe no mar, sem dar muita atenção à índia.
Certo dia, chegou até à região dos três um índio que, a mando de Jacaúna, convocou Poti para a guerra: uns brancos haviam se aliado a Irapuã para combater os pitiguaras. Martim fez questão de ir com o amigo.
Os dois guerreiros partiram sem se despedir de Iracema. Ao caminharem ainda no território de sua nação, à beira de um lago, Poti fincou no chão uma flecha de Martim e atravessou nela um goiamum que ele acabara de abater, sabendo que a índia, ao ver a seta daquele jeito, entenderia o sinal de que o esposo havia partido. Martim entrelaçou nela uma flor de maracujá.
De fato, quando Iracema foi se banhar no dia seguinte, viu a flecha, entendeu seu sinigficado e chorou. Voltou triste para a cabana. Todos os dias ela retornava e tinha confirmação de que Martim estava longe. Seus dias passaram a ser muito tristes. Numa dessas manhãs, ouviu o som da jandaia que a acompanhava quando morava entre os seus. Comoveu-se, arrependeu-se de havê-la deixado para trás e de novo a tornou sua amiga de todas as horas.
Os dois guerreiros retornaram da batalha, vitoriosos. Graças à participação de Martim, que atuou eficazmente, os pitiguaras venceram, pois, sem a cooperação da raça branca, haveria o empate das forças indígenas adversárias.
De novo em sua cabana, Martim e Iracema se amaram como no início de seu relacionamento. Aos poucos, porém, ele voltou a se isolar triste, olhando para os horizontes infinitos do mar, com saudade de sua gente. Iracema se afastava, também triste. Martim sabia que, se voltasse para sua terra, ela o acompanharia; então, ele estaria tirando dela um pedaço de sua vida, que era a convivência com seus parentes e amigos nas selvas.
Martim negava que estivesse com saudade da namorada branca que deixara em sua terra, mas a tristeza de Iracema crescia porque ela não acreditava na negativa dele; então, a desconsolada índia prometia que sairia da sua vida tão logo nascesse o filho.
Um dia, apareceu no mar, ao longe, um navio dos guerreiros brancos que vinham aliar-se aos tupinambás para lutarem contra os pitiguaras. Poti e Martim armaram uma estratégia de defesa. Esconderam seus guerreiros e atacaram os inimigos de surpresa. A vitória foi retumbante.
Enquanto Martim estavacombatendo, Iracema teve sozinha o filho, a quem chamou de Moacir, filho da dor. Certa manhã, ao acordar, ela viu à sua frente o irmão Caubi, que, saudoso, vinha visitá-la, trazendo paz. Admirou a criança, porém surpreendeu-se com a tristeza da irmã, que pediu a ele que voltasse para junto de Araquém, velho e sozinho.
De tanto chorar, Iracema perdeu o leite para alimentar o filho. Foi à mata e deu de mamar a alguns cachorrinhos; eles lhe sugaram o peito e dele arrancaram o leite copioso para voltar a amamentar. A criança estava se nutrindo, mas a mãe perdera o apetite e as forças, por causa da tristeza.
No caminho de volta, findo o combate, Martim, ao lado de Poti, vinha apreensivo: como estaria Iracema? E o filho? Lá estava ela, à porta da cabana, no limite extremo da debilidade. Ela só teve forças para erguer o filho e apresentá-lo ao pai. Em seguida, desfaleceu e não mais se levantou da rede.
Suas últimas palavras foram o pedido ao marido de que a enterrasse ao pé do coqueiro de que ela gostava tanto. O sofrimento de Martim foi enorme, principalmente porque seu grande amor pela esposa retornara revigorado pela paternidade. O lugar onde se enterrou Iracema veio a se chamar Ceará.
Martim retornou para sua terra, levando o filho. Quatro anos depois, eles voltaram para o Ceará, onde Martim implantou a fé cristã. Poti se tornou cristão e continuou fiel amigo de Martim. Os dois ajudaram o comandante Jerônimo de Albuquerque a vencer os tupinambás e a expulsar o branco tapuia. De vez em quando, Martim revia o local onde fora tão feliz e se doía de saudade. A jandaia permanecia cantando no coqueiro, ao pé do qual Iracema fora enterrada. Mas a ave não repetia mais o nome de Iracema. “Tudo passa sobre a terra.”
COMENTÁRIO
No século XIX, os condutores do Brasil se dividiam entre a origem portuguesa e os interesses nacionais. Aqueles que desejavam tornar o país uma grande nação não tinham um passado coerente, só esperavam o futuro, não sabiam como traçar o perfil de uma identidade brasileira.
O indianismo romântico nasceu numa jovem nação libertada, que precisava “inventar” um passado heróico, mítico, lendário, lançar arquétipos de nacionalidade, encontrar um rosto que nos identificasse e nos distinguisse da Europa. Gonçalves Dias e Alencar fundaram a mitologia indianista num mundo edênico.
Todavia, as raízes européias fizeram de nosso índio o “bom selvagem” de Rousseau, personagem de um povo colonizado dependente da Europa, em busca de auto-afirmação. Por isso se elaborou ma visão artificial de nossas origens e o perfil europeizante e cavalheiresco de nosso índio, situação satirizada pelos modernistas, principalmente Oswald de Andrade.
O indianismo de Alencar foi, portanto, uma proposta de valorizar o passado e de delinear o retrato do brasileiro: “Ubirajara”, antes da efetiva colonização portuguesa, selvagens alheios a qualquer influência estrangeira; “Guarani”, durante a colonização portuguesa, que foi desaparecendo por ação da natureza e pela promessa de outra raça (Ceci e Peri); “Iracema” cumpre esse objetivo de modo mais humano, menos épico, sob a forma de lenda apoiada sobre fundamento histórico (Alencar recorre ao século XVII para construir a lenda da fundação do povo brasileiro).
O livro saiu publicado em 1865, com o nome “Iracema” e com a indicação: lenda do Ceará.
Parece ter-se inspirado Alencar no livro “Atala e René” (1801), do francês Chateaubriand, que, por sua vez, foi uma versão das histórias imaginadas na Europa de então: náufrago europeu apaixonado por alguma nativa americana, africana ou asiática. (No caso de Chateaubriand, a história passa-se na região do baixo Mississipi, no início da extinção dos índios natchez, localizados em Luisiana, região da América Francesa).
No prólogo, o próprio Alencar designou o livro como cearense, escrito dedicado aos cearenses por um cearense ausente. Ele oferece a seguinte fundamentação histórica da obra: em 1603, foi fundado o primeiro povoado colonial no Ceará, com o nome de Nova Lisboa, que veio a ser destruído pelos indígenas.
Em 1608, reconstituiu-se a colonização numa expedição da qual participou Martim Soares Moreno, que ficou amigo de Jacaúna e Poti. Eles habitavam nas margens do rio Acaracu, mas acabaram estabelecendo-se nas proximidades do recente povoado, para protegê-lo contra os índios do interior e os franceses. Poti, que recebeu o nome cristão de Antônio Filipe Camarão, e Martim se celebrizaram por sua atuação na expulsão dos holandeses.
No epílogo, o autor afirmou ter sido sua intenção original construir um poema com o assunto. Contudo, iria ser um poema longo e talvez não compreendido pelos leitores. Acabou optando pelo romance, cujos erros da primeira edição ele gostaria de corrigir na segunda edição.
Trata-se de uma lenda do Ceará, pois realizou a fusão dos mitos indígenas e dos elementos da natureza. Exemplos de mitos: nascimento de Moacir, primeiro cearense, primeiro brasileiro, primeiro homem americano, resultado primeiro da mistura das raças índia e portuguesa; morte de Iracema; retorno de Martim; conversão de Poti.
Alencar profetizou o que não viu sobre a nação brasileira que ele fazia nascer em “Iracema”: o filho da dor – ou seja, o brasileiro – só foi alimentado pela mãe à custa do próprio sangue dela, que morreu para que o filho vivesse e crescesse à imagem e semelhança do pai; as raças se uniriam sendo expulsas do paraíso inicial e se reequilibrando sem final feliz.
Significado fundamental da lenda sobre o amor de Iracema e Martim: representação do processo de conquista e colonização do Brasil (o desejo, a sedução, o amor declarado, a morte de Iracema – do Brasil primitivo – , a sobrevivência de Martim – o elemento branco – e do filho – o brasileiro miscigenado).
O argumento do livro pode assim ser resumido: os integrantes do casal-protagonista isolam-se de suas comunidades originárias ( a inspiração lírica de um idílio amoroso envolve componentes épicos e históricos).
“A história de amor foi tragada pelo tempo (Tudo passa sobre a terra), enquanto o discurso pede passagem para debater a questão da nacionalidade.” (Eliana Yunes).
“Iracema” é um poema em prosa: no conteúdo, há o predomínio do lirismo na relação amorosa do casal protagonista, deixando em segundo plano a ação e abandonando o tom épico de “Guarani”; na forma, há linguagem sonora, plena de símiles (figuras de comparação) e de dípticos (símiles ampliados).
A linguagem rompeu com padrões estilísticos e gramaticais portugueses, sobretudo pelo emprego acentuado do vocabulário tupi, esforço de criação de um romance tipicamente brasileiro. Esse brasileirismo de Alencar não se restringiu apenas à linguagem, ele pretendeu adequar as características gerais do Romantismo europeu a uma mitologia indígena-nacionalista, para representar as origens do país em seu processo de colonização.
Na segunda edição, Alencar afirmou : “O conhecimento da língua indígena é o melhor critério para a nacionalidade da literatura. Ele nos dá não só o verdadeiro estilo, como as imagens poéticas dos selvagens, os modos de seu pensamento, as tendências de seu espírito, e até as menores particularidades de sua vida. É nessa fonte que deve beber o poeta brasileiro; é dela que há de sair o verdadeiro poema nacional, tal como eu o imagino”.
Por: www.setanet.com.br
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