Pneumotórax
Febre, hemoptise, dispnéia, e suores noturnos.
A vida inteira que podia ter sido e que não foi.
Tosse, tosse, tosse.
Mandou chamar o médico:
– Diga trinta e três.
-Trinta e três… trinta e três… trinta e três…
– Respire.
………………
– O senhor tem uma escavação no pulmão esquerdo e o pulmão direito infiltrado.
– Então, doutor, não é possível tentar o pneumotórax?
– Não. A única coisa a fazer é tocar um tango argentino.
Um dos mais conhecidos textos de Bandeira e de todo o modernismo. O tema é claramente autobiográfico. Observe o tom coloquial e irônico, quebrado por uma frase-síntese de grande intensidade (segundo verso) e pelo final inesperado, desconcertante, do humor absurdo diante da morte sem remédio, final típico de poema piada característico da poesia moderna.
Poética
Estou farto do lirismo comedido
Do lirismo bem comportado
Do lirismo funcionário público com o livro de ponto
expediente protocolo e manifestações de apreço ao
sr. Diretor.
Estou farto do lirismo que pára e vai averiguar no
dicionário o cunho vernáculo de um vocábulo.
Abaixo os puristas
Todas as palavras sobre tudo os barbarismos universais
Todas as construções sobre tudo a síntese de exceção
Todo os ritmos sobretudo os instrumentais
Estou farto do lirismo namorador
Político
Raquítico
Sifilítico
De todo o lirismo que capitula ao que quer que seja fora
de si mesmo
De resto não é lirismo
Será contabilidade tabela de co-senos secretário do
amante exemplar com cem modelos de cartas e as
diferentes maneiras de agradar às mulheres etc.
Quero antes do lirismo dos loucos
O lirismo dos bêbados
O lirismo difícil e pungente dos bêbados
O lirismo dos clowns de Shakespeare
– Não quero mais saber do lirismo que não é libertação.
Este texto equivale a um manifesto modernista. Metapoema, poesia que fala de poesia. Observe que ele apresenta negações e rupturas – contra as convenções que desfiguram a criação poética, em especial as do academicismo parnasiano – e apresenta, por outro lado, afirmações libertárias típicas da luta modernista (particularmente no final do poema). Observe o título verso, frase síntese, verdadeiro slogan do momento heróico do modernismo.
Vou-me embora pra Pasárgada
Vou-me embora pra Pasárgada
Lá sou amigo do rei
Lá tenho a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada
Vou-me embora pra Pasárgada
Aqui eu não sou feliz
Lá a existência é uma aventura
De tal modo inconseqüente
Que Joana a Louca de Espanha
Rainha e falsa demente
Vem a ser contraparente
Da hora que nunca tive
E como farei ginástica
Andarei e bicicleta
Montarei em burro brabo
Subirei no pau-de-sebo
Tomarei banhos de mar!
E quando estiver cansado
Deito na beira do rio
Mando chamar a mãe-d’água
Pra me contar as histórias
Que no tempo de eu menino
Rosa vinha me contar
Vou-me embora pra Pasárgada
Em Pasárgada tem tudo
É outra civilização
Tem um processo seguro
De impedir a concepção
Tem telefone automático
Tem alcalóide à vontade
Tem prostitutas bonitas
Para a gente namorar
E quando eu estiver mais triste
Mas triste de não ter jeito
Quando de noite me der
Vontade de me matar
– Lá sou amigo do rei –
Terei a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada…
Texto-síntese da poesia de Bandeira, tanto de sua linguagem como de sua temática da vida que podia ter sido, que precisava ter sido – e que não foi . observe a enumeração livre dos elementos que compõe a Pasárgada – lugar ideal, lugar de sonhos, lugar de desejo, onde a vida é o que deveria ser. Na segunda estrofe, observe a enumeração caótica, sem seqüência lógica, dos elementos. Observe também a extrema simplicidade da linguagem, junto da mais intensa expressividade.
Estrela da manhã
Eu queria a estrela da manhã
Onde está a estrela da manhã?
Meus amigos meus inimigos
Procurem a estrela da manhã
Ela desapareceu ia nua
Desapareceu com quem?
Procurem por toda à parte
Digam que sou um homem sem orgulho
Um homem que aceita tudo
Que me importa?
Eu quero a estrela da manhã
Três dias e três noite
Fui assassino e suicida
Ladrão, pulha, falsário
Virgem mal-sexuada
Atribuladora dos aflitos
Girafa de duas cabeças
Pecai por todos pecai com todos
Pecai com malandros
Pecai com sargentos
Pecai com fuzileiros navais
Pecai de todas as maneiras
Com os gregos e com os troianos
Com o padre e o sacristão
Com o leproso de Pouso Alto
Depois comigo
Te esperarei com mafuás novenas cavalhadas comerei terra e direi coisas de uma ternura tão simples
Que tu desfalecerás
Procurem por toda à parte
Pura ou degradada até a última baixeza
Eu quero a estrela da manhã.
Outro texto-síntese, um dos mais expressivos poemas lírico-amoroso de todo o Modernismo. Observe a celebração da mulher amada, evocada na metáfora estrela; a enumeração caótica das imagens, o desconcerto amoroso.
Na quinta e sexta estrofes, observe uma espécie de ladainha para celebrar a amada, para fazer uma invocação (na verdade, é uma paródia da ladainha para a Virgem Maria, que acompanhava a reza do terço: consoladora dos aflitos / rogai por nós etc). observe a intensidade – até o delírio – da confissão amorosa nas duas últimas estrofes.
Arte de amar
Se queres sentir a felicidade de amar, esquece a tua alma.
A alma é que estraga o amor.
Só em Deus ela pode encontrar satisfação.
Não noutra alma.
Só em Deus – ou fora do mundo.
As almas são incomunicáveis.
Deixa o teu corpo entender-se com outro corpo.
Porque os corpos se entendem, mas as almas não.
Um dos mais conhecidos poemas com tema da morte. Observe o tom sereno, familiar, camarada. Consolada, a ceia de fim de ano, no texto representa encontro simbólico com a morte.
O poema apresenta um balanço do vivido, sem ilusões contra a própria finitude, e não se desfigura diante da presença indesejada pelas gentes. O dia foi bom, com cada coisa no seu lugar. Observe também, tal como nos outros textos, a linguagem coloquial, a estrófica irregular, heterogênea, o verso livre.
Poema filosófico, fundamentador da lírica erótica, intensamente corporal, de Manuel Bandeira. Observe a ruptura do senso comum, das concepções espiritualizantes e platônicas de amor.
O texto, de natureza dissertativa, com ponto de vista e processo de argumentação, é também radicalmente poético, pela força das imagens e dos ritmos. O texto é dirigido para alguém, para um interlocutor, que acaba se transformando no próprio leitor.
Consoada
Quando a Indesejada das gentes chagar
(Não sei se dura ou coroável),
Talvez eu tenha medo.
Talvez sorria, ou diga:
– Alô, iniludível!
O meu dia foi bom, pode a noite descer.
(A noite com os seus sortilégios.)
Encontrará lavrado o campo, a casa limpa.
A mesa posta,
Com cada coisa em seu lugar.
Por: LiteraturaVirtual – João Amálio Ribas
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