“A história mostrou mais de uma vez como os destinos dos maiores impérios foram decididos pela saúde de seu povo e de seu exército; não há mais dúvida de que a história das crenças epidêmicas deve ser uma parte inseparável da história cultural da humanidade.
As epidemias correspondem a grandes sinais de alerta que mostram ao verdadeiro estadista que um distúrbio ocorreu no desenvolvimento de seu povo, que nem mesmo uma política caracterizada pelo desinteresse pode negar.”
Diante de tal concepção, a prática de intervenção não poderia continuar sendo a da “Polícia Médica”. Os defensores da Medicina Social atribuíam ao Estado o cuidado à saúde, mas propunham profundas alterações na organização política e social.
“A primeira tarefa do medico é política; a luta contra a doença deve começar por uma guerra contra os maus governos; o homem só será total e definitivamente sadio se for primeiramente liberto.”
Concomitantemente ao desenvolvimento da Medicina Social na França e Alemanha, começa a tomar forma na Inglaterra a reforma sanitária que, sem negar as relações existentes entre as condições de vida e a presença de doenças, propõe-se a intervir sobre certos aspectos da vida urbana sem modificar a organização social.
Com a derrota dos movimentos políticos aos quais se vinculavam os defensores da Medicina Social e com as descobertas bacteriológicas, a corrente reformista consolidou-se. Os problemas são deslocados da esfera da produção para os “hábitos morais” da população trabalhadora e a prática educativa baseada na transmissão de principios higiênicos adequados.
Snow, em seus famosos estudos das epidemias de cólera em Londres, publicados em “Sobre a maneira de transmissão da cólera” afirma:
“. . . nada favorece mais a propagação da cólera que a ausência de asseio pessoasl, seja proveniente de hábito ou de escassez de água … a menos que tais pessoas (as que cuidam dos doentes) sejam extremamente limpas em seus hábitos e lavem as mãos antes de comer, é inevitável que acidentalmente engulam um pouco de excreção e depositem alguma no alimento em que tocam ou preparam, alimento esse que é comido pelo resto da família, a qual, em se tratando da classe trabalhadora — freqüentemente é obrigada a fazer as refeições no quarto do doente.”
Entre as providências a serem adotadas durante as epidemias de cólera Snow propõe: asseio escrupuloso das pessoas que cuidam dos doentes, lavagem imediata das roupas dos doentes, ferver e filtrar a água para beber, comer apenas alimentos cozidos ou fritos, isolamento do doente, informação ao povo sobre a transmissibilidade da doença.
Para prevenir a ocorrência de epidemias o autor propõe um sistema eficiente de drenagem, abastecimento de água de boa qualidade, criação de hospedarias para indigentes pobres em geral, inculcar hábitos de asseio pessoal em todos, manter vigilância sobre as pessoas e navios provenientes de regiões infectadas.
O caráter da reforma sanitária está presente nessas medidas assim como a redução da determinação social aos hábitos e modos de vida das populações pobres está evidente na discussão sobre o modo de transmissão da doença.
A crítica que aqui está sendo feita ao trabalho de Snow não pretende invalidar a grande contribuição, por ele dada ao conhecimento da cólera e de seu mecanismo de transmissão, bem como ao desenvolvimento do método de investigação epidemiológica; pretende apenas ressaltar a reformulação sofrida pela concepção de causação social das epidemias, ocorridas na Inglaterra.
No final do século XIX e início do século XX as epidemias aparecem relacionadas, inicialmente, à expansão imperialista das potências européias e dos Estados Unidos e, posteriormente, nos países do Terceiro Mundo.
A respeito desse período Breilh comenta:
“Em vez de incorporar achados como os microbiológicos ao enfoque integrador dos anticontagionistas (defensores da Medicina Social) situando os germes como uma condição necessária mas insuficiente, se desfigurou o processo, convertendo os germes e alterações funcionais na causa única das doenças. O capitalismo logrou assim mistificar a saúde-doença, escondeu sob o tapete da unicausalidade a epidemiologia Virchowiana mais ampla. . . .”1
As dificuldades encontradas pelos conquistadores no desbravamento das colônias tornaram prioritários os estudos das “moléstias tropicais”. O enfoque dado a essas pesquisas visava tornar claro que as agressões sofridas pelos homens eram provenientes de causas naturais e totalmente desvinculadas da forma de organização social dominante.
Até a década de 40 deste século, vários projetos financiados por fundações americanas ou patrocinadas por instituições internacionais foram levados a cabo no sentido de erradicar doenças como a malária, a febre amarela e a oncocercose.
Bastante ilustrativas com relação aos objetivos de tais projetos são as palavras do Vice-Presidente da “United Fruit Company” citadas por Breilh:
“Nas áreas subdesenvolvidas em que têm se instalado as companhias norte-americanas, obtendo sucesso de grandes empresas, e onde ainda hoje continuam, um dos principais fatores foi o estabelecimento de condições de saúde sob as quais as pessoas pudessem não apenas existir mas trabalhar . . . não teria sido possível extrair minérios, plantar bananas, nem retirar petróleo se este aspecto fundamental não houvesse sido considerado”1
A adoção do modelo unicausal determinou que os programas de intervenção da época, estivessem voltados para a erradicação das doenças. Imaginava-se que os desenvolvimentos científico e tecnológico propiciariam os instrumentos necessários a esse fim.
Na década de 30, Soper ratificou a impossibilidade de tais medidas sugerindo a adoção de metas como “controle, em nível razoável, dessas doenças”, ao invés da erradicação.
No pós-guerra surgem os conceitos de contenção e vigilância de clara inspiração militar. A Saúde Pública passa a adotar a visão do “inimigo” e de sua “contenção” Para ilustrar o fenômeno Garcia cita o trecho de relatório referente ao controle de Anopheles gambiae:
“A estratégia da campanha foi como a estratégia da batalha de Bulge. O inimigo teve que ser inicialmente contido dentro da área em que havia assestado seu domínio para então ser cercado e eliminado.”
O mesmo relatório termina afirmando:
“… o preço da liberdade é a eterna vigilância, sejam os mosquitos a ameaça, ou as vis intenções do homem.”
No final dos anos 60 e início da década de 70 a noção de contenção é substituída pela “Vigilância Epidemiológica” que pressupõe o alerta constante e o desencadeamento de ações de controle imediatas a fim de circunscrever o problema em sua fase inicial.
As sucessivas alterações da estrutura social, principalmente nos países não desenvolvidos, na conjuntura de crise dos anos 70 propiciaram a reinstalação de muitos problemas cujo controle era tido como satisfatório. Nessa condição incluimos as recentes epidemias de malária, febre amarela silvestre e dengue, que vêm acometendo vários países da América Latina.
Desta forma, a questão das epidemias torna-se mais uma vez presente, pondo em cheque, a maneira habitual de concebê-las e controlá-las.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1. BREILH, Jaime Epidemiologia: economia, medicina e política Santo Domingo SESPAS 1980. [ Reference links services ]
2. CASTIGLIONE, Arturo História da Medicina Rio de Janeiro Companhia Editora Nacional 1947. [ Reference links services ]
3. FOUCAULT, Michel O Nascimento da Clínica Rio de Janeiro Ed. Forense Universitaria, 1977. [ Reference links services ]
4. KEELE, Kenneth D. The Sydehan — Boyle Theory of morbific particles Medical History, 18; 240-248. [ Reference links services ]
5. ROSEN, George Da polícia médica à medicina social. Rio de Janeiro, Ed. Graal, 1979. [ Reference links services ]6. SNOW, John Sobre a maneira de transmissão da cólera. Rio de Janeiro, USAID, 1967. [ Reference links services ]
Por: Rita de Cássia Barradas Barata
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