Não é possível estabelecer uma divisão rigorosa da matéria tratada por Cecilia Meireles. A razão é que o Romanceiro não poucas vezes avança ou faz regredir uma perspectiva. Além disso, há poemas transitórios, feitos de considerações de momento, verdadeiros parênteses ou interpolações do poeta (alguns desses poemas não recebem o título de “romance”). De qualquer forma, é possível ver-se um plano geral de composição, que resumimos da seguinte maneira:
1. Ambiente e Contexto (romances I-XXIII)
Caracterização do boom minerador, seu papel social e histórico, suas figuras humanas e sociais, suas crenças e expectativas.
Elementos ligados à tradição lendária (o caçador que se embrenha na mata, o caso da donzela assassinada pelo próprio pai, o cantar do negro nas catas, a que se podem associar os romances Do Chico-Rei e o De Vira-e-Sai) ou à tradição histórica (a troca dos o fim de Ouro Podre, o requesto promovido pelo ouvidor Bacelar, a provocante história de Chica da Silva, amante de João Fernandes, a cobiça do conde de Valadares, que desgraçou a ambos, o adensar-se da ambição de posse e das idéias de libertação, mais pronunciado nos três últimos romances desta primeira parte.
De qualquer forma, toda esta primeira parte está governada por um princípio de reorganização lendária e folclórica da realidade histórica, com intensa participação da atmosfera de estribilho popular (dialogismo, provérbios, exclamações) e sugestão de coral trágico a que já fizemos referência.
2. Articulação e fracasso (romances XXI V-XL VH)
Começa propriamente a articulação do movimento rebelde contra a opressão lusitana:
Atrás de portas fechadas, à luz de velas acesas, uns sugerem, uns recusam, uns ouvem, uns aconselham. Se a derrama for lançada, há levante com certeza. Corre-se por essas ruas? Corta-se alguma cabeça? Do cimo de alguma escada, profere-se alguma arenga? Que bandeira se desdobra? Com que figura ou legenda? Coisas da maçonaria, do Paganismo ou da Igrefa? A Santíssima Trindade? Um gênio a quebrar algemas?
(Romance XXIV ou Da Bandeira da Inconfidência.)
O clima de terror começa com a chegada de uma carta misteriosa e ameaçadora:
Veio uma carta de longe.
O que dizia não sei.
Há calúnias, há suspeitas…
(Vede as lanelas fechadas!
Confabulam! Querem Rei!)
(Romance XXV ou Do Aviso Anônimo.)
Não obstante, toma vulto a agitação preparatória do movimento, a fermentação das idéias liberais, a atividade incansável de Tiradentes, a carta-denúncia de Joaquim Silvério, e a repressão do governo central, com a prisão dos principais envolvidos. Poetização da figura de Tiradentes (a fala dos velhos, a ironia dos tropeiros, a predição do cigano, o mistério dos seguidores encapuzados, as testemunhas, os delatores — estes últimos são especialmente focalizados pela indignação do poeta).
3. Morte de Cláudio e Tiradentes (romances XLVIII-LXIV)
As circunstâncias misteriosas em que se deu a morte de Cláudio Manuel da Costa servem de substância para a divagação de Cecilia Meireles. A morte de Tiradentes, por sua vez, é antecipada nas palavras do carcereiro. Focaliza-se também a Tomás Antonio Gonzaga, suas angústias e expectativas de prisioneiro, seus sonhos, suas fracassadas tentativas de se libertar por meios judiciários. Essa parte culmina com o momento verdadeiramente trágico de Tiradentes: seus passos de condenado rumando à forca, a indiferença ou o contentamento de uma parte da população, etc.
4. A infelicidade de Gonzaga e de Alvarenga Peixoto (romances LXV-LXXX)
Esta parte se abre com um panorama do ambiente em que Gonzaga vivera e se tornara magistrado e poeta de prestígio. Depois, vem caindo sobre ele a ironia trágica, representada nas murmurações e desconfianças, na precipitação do desterro (degredo para África), e, portanto, na perda daquela Manha bela que ele cantara como Dirceu apaixonado.
Há também uma oposição amarga entre o retrato de Manha e o de Juliana de Mascarenhas (esta última conquistará o coração do poeta, já em seu desterro de Moçambique). Háo inconformismo de Manha, que ficará solteira até o final de sua vi-da. Há também um verdadeiro ciclo da vida do poeta Alvarenga Peixoto.
Sua mulher, Bárbara Ehiodora, é focalizada em grande momento lírico de Cecilia Meireles. Há também a bela filha de Alvarenga, Maria Ifigênia (“a princesa do Brasil”), que vem a morrer. A imagem final é a da octogenária Manha, indo a caminho da paróquia de Antonio Dias.
5. Conclusão e D. Maria 1 (romances LXXXI-LXXXV mais a Fala aos Inconfidentes Mortos).
É o fechamento do Romanceiro da Inconfidência, com alguns poemas de lamento e dramaticidade, reflexão dolorida sobre o conjunto da tragédia mineira. Esta parte é curta e peremptónia. D. Maria 1 é vista vinte anos depois, já no Brasil. Sua loucura galopante contempla agora o que ela mesma havia feito com poetas, soldados, doutores. Os remorsos a levam à morte. O livro se encerra com a Fala aos Inconfidentes Mortos:
Grosso cascalho da humana vida… Negros orgulhos, ingênua audácia, e fingimentos e covardias (e covardias!) vão dando voltas no imenso tempo,
— à água implacável do tempo imenso, rodando soltos, com sua rude miséria exposta, Parada noite, suspensa em bruma:
não, não se avistam os fundos leitos… Mas no horizonte do que é memória da eternidade, referve o embate de antigas horas, de antigos fatos, de homens antigos.
E aqui ficamos
todos contritos,
a ouvir na névoa
o descon forme,
submerso curso
dessa torrente
do purgatório…
Quais os que tombam, em crimes exaustos, quais os que sobem, purificados?
A AUTORA
CECÍLIA Benevides de Carvalho MEIRELES (1901-1964) tem sido um dos poetas mais aplaudidos de todo o movimento modernista. Pertenceu à geração de Drummond e Vinícius (segunda do Modernismo, 1930). Da mesma forma que ocorrera com Vinícius, a maturidade de Cecilia
Meireles só se revelaria depois das primeiras publicações, portanto, a partir de Viagem (1939) e Vaga Música (1942). Trata-se, enfim, de uma poesia que se caracteriza por renovar a herança do Simbolismo brasileiro (Cruz e Sousa, Alphonsus de Guimarães) e pela delicadeza da expressão leve, difusa e colorida.
O Simbolismo, quer no século XIX, quer neste século, caracterizou-se pela expressão do fugaz, do evanescente, enfim, do clima “estratosférico» — e, por causa disso, veio a receber muitas censuras, sobretudo de parte dos que defendiam uma poesia social. É possível, portanto, que essa obra de forte caráter social, que é o Romanceiro da Inconfidência (1953), tenha sido uma resposta de Cecilia a seus eventuais detratores.
Claro, esta não seria apenas uma resposta, pois Cecilia certamente não escrevera o livro para responder aos críticos. O certo éque o Romanceiro não deixou de marcar uma mudança de registro na poesia que Cecilia vinha fazendo até então. E, de fato, o Romanceiro da Inconfidência é a confirmação de um grande talento e de uma grande vocação poética. De qualquer forma, épreciso ver as principais críticas que já foram feitas à poesia de Cecilia como um todo. Elas são duas:
1. Não se descobre nela nenhum impulso de investigação temática. Quando muito um vago de saudade, amor perdido ou inatingitlo, e solidão.
2. Rica de imagens, a sua linguagem é, contudo, demasiado clara, conduzindo-nos a uma visualízação rápida e fácil, o que ocorre até nos versos finais de composição, que se apresentam definidores e, por isso, condenáveis.
(CANDIDO, Antonio & Castello, J. Aderaldo. Presença da Literatura Brasileira — III. São Paulo, Difusão Européia do Livro, 1972. p. 113.)
Critica o gosto
Relativamente e só relativamente essas duas críticas são acertadas. Pois, se realmente Cecilia incorre em algumas limitações, não é menos certo que tenha apresentado qualidades que não foram mencionadas, qualidades que se foram aprimorando com a maturação do estilo. Aliás — e abramos um parêntese —, toda crítica esbarra sempre com uma difícil questão, que é a questão do gosto.
Muita gente costuma dizer: “Gosto não se discute”. Em parte é verdade. Mas o fato de gostarmos de um poeta não nos impede de separar nesse poeta aquilo que é bom daquilo que é apenas médio, ou mesmo ruim. Há quem goste de laranla, por ter a laranja um sabor ácido.
Isso realmente não se discute. O que parece contradição é que a mesma pessoa que goste de laranja prefira a melancia ao abacaxi, quando se sabe que o segundo é ácido e a primeira não. Afinal, o gosto precisa ter alguma lógica. Uma lógica que se explique.
Ora, os poetas não têm a coerência ou a unidade da fruta, que é sempre a mesma. Os poetas são sensíveis à crítica, ao público, à própria autocrítica, e acabam mudando, instituindo formas novas. Quer dizer, eles procuram se livrar daquilo que neles é datado, superado, desgastado, ao mesmo tempo que procuram manter aquilo que neles é estimulante ou surpreendente.
Por: Leia Menos
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