Parte I Os Aventureiros
Primeiro Capítulo ( Cenário)
Aqui, há uma indicação temporal: “No ano da graça de 1604” e, como o nome do capítulo ressalta, o espaço é delimitado. A Serra dos Órgãos, o Rio Paquequer, a vegetação:
” Tudo era grande e pomposo no cenário que a natureza, sublime artista, tinha decorado para os dramas majestosos dos elementos, em que o homem é apenas um simples comparsa.”
E uma casa surge diante de nossos olhos:
“Entretanto, via-se à margem direita do rio uma casa larga e espaçosa, construída sobre uma eminência, e protegida de todos os lados por uma muralha de rocha cortada a pique. (…)
Descendo dois ou três degraus de pedra da escada, encontrava-se uma ponte de madeira solidamente construída sobre uma fenda larga e profunda que se abria na rocha. Continuando a descer, chegava-se à beira do rio, que se curvava em seio gracioso, sombreado pelas grandes gameleiras e angelins que cresciam ao longo das margens. (…)
As paredes e o teto eram caiados, mas cingidos por um largo florão de pintura a fresco; nos espaços das janelas pendiam dois retratos que representavam um fidalgo velho e uma dama também idosa.
Sobre a porta do centro desenhava-se um brasão de armas em campo de cinco ou seis vieiras de ouro, riscadas em cruz entre quatro rosas de prata sobre palas e faixas. No escudo, formado por uma brica de prata orlada de vermelho, via-se um elmo também de prata, paquife de ouro e azul, e por um timbre um meio leão de azul com um vieira de ouro sobre a cabeça.”
Está pronto o cenário onde acontecerá nossa história: a natureza exuberante e a casa de D. Antônio de Mariz, fidalgo lusitano.
Capítulo II (Lealdade)
“A habitação que descrevemos pertencia a D. Antônio de Mariz, fidalgo português de cota d’armas e um dos fundadores da cidade do Rio de Janeiro.
Era dos cavaleiros que mais se haviam distinguido nas guerras da conquista, contra a invasão dos franceses e os ataques dos selvagens.”
Um dado histórico é introduzido, esclarecendo-se sobre D. Antônio de Mariz. É preciso observar que Alencar utilizou-se de um núcleo histórico realmente ocorrido, de que tomou ciência por documentos. Tal personagem realmente existiu e habitou aquelas paragens:
“Em 1567 acompanhou Mem de Sá ao Rio de Janeiro, e depois da vitória alcançada pelos portugueses, auxiliou o governador nos trabalhos da fundação da cidade e consolidação do domínio de Portugal nessa capitania.
Fez parte em 1578 da célebre expedição do Dr. Antônio de Salema contra os franceses, que haviam estabelecido uma feitoria em Cabo Frio para fazerem o contrabando de pau-brasil.
Serviu por este mesmo tempo de provedor da real fazenda, e depois da alfândega do Rio de Janeiro; mostrou sempre nesses empregos o seu zelo pela república e a sua dedicação ao rei.
Homem de valor, experimentado na guerra, ativo, afeito a combater os índios, prestou grandes serviços nas descobertas e explorações do interior de Minas e Espírito Santo. Em recompensa do seu merecimento, o governador Mem de Sá lhe havia dado uma sesmaria de uma légua com fundo sobre o sertão, a qual depois de haver explorado, deixou por muito tempo devoluta.
A derrota de Alcácer-Quibir, e o domínio espanhol que se lhe seguiu, vieram modificar a vida de D. Antônio de Mariz.
Português de antiga têmpera, fidalgo leal, entendia que estava preso ao rei de Portugal pelo juramento da nobreza, e que só a ele devia preito e menagem. Quando, pois, em 1582, foi aclamado no Brasil D. felipe II como sucessor da monarquia portuguesa, o velho fidalgo embainhou a espada e retirou-se do serviço.”
O fidalgo D. Antônio esperou que D. Pedro da Cunha viesse em expedição ao Brasil, para onde se dizia que a coroa portuguesa seria transferida. Como se isso não se realizasse, o fidalgo tomou seus penates, brasão, armas e família e foi estabelecer-se na sesmaria que lhe concedera Mem de Sá.
Era abril de 1593. D. Antônio deu à habitação que mandara construir o máximo conforto e mandou vir de Portugal oficiais mecânicos e hortelãos que deram aos habitantes daquela sesmaria todo o conforto necessário.
Ao redor da casa, estabeleceram-se os aventureiros, quarenta, gente sob as ordens do fidalgo e que quando da ocasião da aproximação ou ataque dos índios, vinham todos se reunir na casa do fidalgo. Deviam-lhe, por tratos de palavra, obediência absoluta e quando iam ao Rio de Janeiro trocar mercadorias produzidas na terra, uma parte dos lucros era de D. Antônio.
Com ele, na casa, habitavam: sua mulher, D. Lauriana, dama paulista, meio egoísta, mas de bom coração; o filho D. Diogo de Mariz; Cecília, que tinha, então, dezoito anos, “deusa desse pequeno mundo” e D. Isabel, uma sobrinha, mas de origem duvidosa e que os homens ser filha de amores entre D. Antônio e uma índia que cativara durante as expedições.
Capítulo III A Bandeira
Um grupo de cavaleiros, composto por 15 pessoas voltava do Rio de Janeiro, costeando a margem direita do Paraíba.
“Naquele tempo dava-se o nome de bandeiras a essas caravanas de aventureiros que se entranhavam pelos sertões do Brasil, à busca de ouro, de brilhantes e de esmeraldas, ou à descoberta de rios e terras ainda desconhecidas. A que nesse momento costeava a margem do Paraíba, era da mesma natureza: voltava do Rio de Janeiro , onde fora vender os produtos de sua expedição pelos terrenos auríferos.”
Um dos cavaleiros, um moço de 28 anos, chamado Álvaro de Sá, vai à frente do grupo e os incita a prosseguirem mais rapidamente: faltavam apenas 4 léguas para que chegassem à sesmaria de D. Antônio. Loredano, com seu sotaque italiano e impertinente, pôs-se a zombar do moço.
Sabia que ele se interessava vivamente por Cecília; sarcástico, de espírito mordaz, incomoda D. Álvaro:
“- Sr. Loredano, é a segunda vez que dizeis esta palavra em um tom que me desagrada; pareceis querer dar a entender alguma coisa, mas falta-vos o ânimo de a proferir. Uma vez por todas, falai abertamente, e Deus vos guarde de tocar em objetos que são sagrados.”
Álvaro está irritado com a desfaçatez com que Loredano trata de assuntos que só a ele pertencem. Acaba por perder a paciência e :
“- Enganais-vos, disse o moço picando o seu cavalo e encostando-se ao italiano, falo-vos seriamente; sois um infame espião! Mas juro, por Deus, que à primeira palavra que proferirdes, esmago-vos a cabeça como a uma cobra venenosa.”
Nesse momento, um rugido fez estremecer toda a floresta e os cavaleiros engatilharam os arcabuzes.
Capítulo IV A Caçada
Você vai conhecer neste capítulo o índio Peri.
Quando a cavalgada chegou à clareira, deparou com esta cena:
“Em pé, no meio do espaço que formava a grande abóbada de árvores, encostado a um velho tronco decepado pelo raio, via-se um índio na flor da idade.
Uma simples túnica de algodão, a que os indígenas chamavam aimará, apertada à cintura por uma faixa de penas escarlates, caía-lhe dos ombros até ao meio da perna, e desenhava o talhe delgado e esbelto como um junco selvagem.
Sobre a alvura diáfana do algodão, a sua pele, cor de cobre, brilhava com reflexos dourados; os cabelos pretos cortados rentes, a tez lisa, os olhos grandes com os cantos exteriores erguidos para a fronte: a pupila negra, móbil, cintilante; a boca forte mas bem modelada e guarnecida de dentes alvos, davam ao rosto pouco oval a beleza inculta da graça, da força e da inteligência. (…)
Era de alta estatura, tinha as mãos delicadas; a perna ágil e nervosa, ornada por uma axorca de frutos amarelos, apoiava-se sobre um pé pequeno, mas firme no andar e veloz na corrida. Segurava o arco e as flechas na mão direita caída, e com a esquerda mantinha verticalmente diante de si um longo forcado de pau enegrecido pelo fogo.”
Perto dele, escondida por entre a folhagem, havia uma onça enorme que o índio quer matar sozinho, conforme anuncia. E vai matá-la numa luta onde a competência do índio leva a melhor. Amarra-a viva e a carrega para as terras de D. Antônio.
Capítulo V Loura e Morena
“Caía a tarde.
No pequeno jardim da casa do Paquequer, uma linda moça se embalançava indolentemente numa rede de palha presa aos ramos de uma acácia silvestre, que estremecendo deixava cair algumas de suas flores miúdas e perfumadas.
Os grandes olhos azuis, meio cerrados, às vezes se abriam languidamente como se para embeberem de luz, e abaixavam de novo as pálpebras rosadas.
Os lábios vermelhos e úmidos pareciam uma flor de gardênia dos nossos campos, orvalhada pelo sereno da noite: o hálito doce e ligeiro exalava-se formando um sorriso. Sua tez alva e pura como um froco de algodão, tingia-se nas faces de uns longes cor-de-rosa, que iam, desmaiando, morrer no colo de linhas suaves e delicadas.”
Observe o trecho e o compare, por exemplo, a um romance realista. Aqui e lá existe descritivismo. No entanto, no Romantismo o descritivismo é cheio de detalhes que levam à idealização. Cecília é “linda moça”, há uma “acácia silvestre”, as flores são “miúdas e perfumadas”. Vá seguindo o trecho: “grandes olhos azuis”, “pálpebras rosadas”, “lábios vermelhos e úmidos”… tudo é perfeito, ideal.
Um romance realista, embora descreva detalhes, aproxima-se mais da realidade, indica o que existe, nunca idealiza.
Você há de contestar e dizer que a descrição de Luísa, em O primo Basílio, por exemplo, também é idealizada. Lá, no entanto, o narrador está apenas construindo uma personagem romântica, uma heroinazinha menor. Compare, então, a descrição de Cecília com Juliana, também de O primo Basílio:
” (…) Juliana entrou, arranjando nervosamente o colar e o broche. Devia ter quarenta anos e era muitíssimo magra. As feições, miúdas, espremidas, tinham a amarelidão de tons baços das doenças de coração. Os olhos grandes, encovados, rolavam numa inquietação, numa curiosidade, raiados de sangue, entre pálpebras sempre debruadas de vermelho. Usava uma cuia de retrós imitando tranças, que lhe fazia a cabeça enorme. Tinha um tique nas asas do nariz. E o vestido chato sobre o peito, curto de roda, tufado pela goma das saias mostrava um pé pequeno, bonito, muito apertado em botinas de duraque com ponteiras de verniz.”
Voltemos à análise: Em “Loura e Morena” duas moças nos são apresentadas; Cecília e Isabel. Cecília loura e Isabel morena. Ambas são primas e corre uma história: que Isabel seja filha de D. Antônio de Mariz com uma índia, quando de suas expedições.
Cecília sonhava que chorava, mas que aparecia ao seu lado um cavalheiro que lhe enxugava as lágrimas. Ao lado dele, um selvagem, como escravo, que lhe erguia uns olhos suplicantes.
Isabel entrou pela portinhola do jardim:
“Os olhos grandes e negros, o rosto moreno e rosado, cabelos pretos, olhos desdenhosos, sorriso provocador, davam a este rosto um poder de sedução irresistível.”
Ambas falam sobre Peri, que desaparecera na tarde anterior e Isabel demonstra certa intolerância para com ele; completa dizendo que também a tratam com desdém. Cecília tenta minimizar a impressão da prima, mas sabe que a mãe a despreza.
Ouve-se o tropel dos cavaleiros que chegam à casa. Cecília chama Isabel para que ambas vejam “as coisas lindas que eles nos trazem”.
Capítulo VI A Volta
Ao mesmo tempo em que Cecília e Isabel estavam no jardim, dois homens conversavam do outro lado da esplanada. Eram D. Antônio e Aires Gomes, seu escudeiro e antigo companheiro de vida aventureira. Falavam sobre o fato de D. diogo, irmão de Ceci, ter cometido a barbaria de ter matado uma índia.
Eis D. Antônio:
” Uma simples preguilha de linho alvíssimo cercava o talho do seu gibão, e deixava a descoberto o pescoço, que sustentava com graça uma bela e nobre cabeça de velho.
Do seu chapéu de feltro pardo sem pluma escapavam-se os anéis de cabelos brancos, que caíam sobre os ombros; através da longa barba alva como a espuma da cascata, brilhavam suas faces rosadas, sua boca ainda expressiva, e seus olhos pequenos mas vivos.
Este fidalgo era D. Antônio de Mariz que, apesar de seus sessenta anos, mostrava um vigor devido talvez à vida ativa; trazia ainda o porte direito, e tinha o passo firme e seguro como se estivesse na força da idade.”
D. Antônio está preocupado que a ação do filho atraia a fúria dos índios contra a casa do Paquequer. D. Aires Gomes garante que os índios o respeitam.
Ao se aproximar do filho, está furioso:
“- Apesar das minhas recomendações expressas, ofendestes um desses selvagens e excitastes contra nós a sua vingança. Pusestes em risco a vida de vosso pai, de vossa mãe e dos homens dedicados. Deveis estar satisfeitos de vossa obra.
– Meu pai! …
– Cometestes uma ação má assassinando uma mulher, uma ação indigna do nome que vos dei; isto mostra que ainda não sabeis fazer uso da espada que trazeis à cinta.
– Não mereço esta injúria, senhor! Castigai-me, mas não rebaixeis vosso filho.
– Não é vosso pai que vos rebaixa, sr. cavalheiro, e sim a ação que praticastes. Não vos quero envergonhar, tirando essa arma que vos dei para combater pelo vosso rei; mas como ainda não vos sabeis servir dela, proíbo-vos que a tireis da bainha que seja para defender a vossa vida.”
O pai determina ao filho que peça serviço a Diogo Botelho, nas expedições.
D. Lauriana, que apareceu à porta, toma as dores do filho e D. Antônio a repreende por tomar as dores do filho e anuncia à mulher que Diogo partirá para Salvador. Apesar da mulher protestar, D. Antônio anuncia que assim será porque ele assim decidiu.
O tropel dos animais vinha chegando, subiram a ladeira e saudaram respeitosamente o casal. Cecília e Isabel também vêm saudar os cavalheiros recém-chegados. Álvaro , corando, foi saudar Cecília e “três olhares bem diferentes a acompanhavam, e partindo de pontos diversos cruzavam-se sobre essas suas cabeças que brilhavam de beleza e mocidade.
D. Antônio de Mariz, sentado a alguma distância, considerava aquele lindo par, e um sorriso íntimo de felicidade expandia o seu rosto venerável.
Ao longe, Loredano, um pouco retirado dos grupos dos seus companheiros, cravava nos moços um olhar ardente, duro , incisivo; enquanto as narinas dilatadas aspiravam o ar com a delícia da fera que fareja a vítima.
Isabel , a pobre menina, fitava sobre Álvaro os seus grandes olhos negros, cheios de amargura e de tristeza; sua alma parecia coar-se naquele raio luminoso e ir curvar-se aos pés do moço.”
Loredano percebeu o sorriso de D. Antônio e compreendeu o que significava. D. Diogo, ainda entristecido pela conversa com o pai, veio saudar os recém-chegados.
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