Qualquer um vê que Cecilia Meireles está fazendo poesia, como também está fazendo história. Essas duas coisas (poesia e história) nem sempre se combinam bem.
O grande pensador grego Aristóteles, na Arte Poética, disse que o poeta conta uma história que poderia ter acontecido (mas que nunca aconteceu e nunca acontecerá). E o historiador, ao contrário, se limitaria a contar uma história que de fato aconteceu. Para Aristóteles, a história não se dá bem com a poesia. Porque uma fala a verdade e a outra inventa o que quiser.
Como é que ficamos, no caso do Romanceiro da lnconfidência? É simples. Cecilia conta de fato a história que culminou com a Inconfidência Mineira, onde mataram Tiradentes, mas não se esquece de incluir também o que poderia ter acontecido, e, sob esse aspecto, o livro dela é um poema, um poema que contém uma história real (mas a recíproca não pode ser verdadeira).
A realidade histórica se funde com a imaginação emocionada, e quem passa a predominar é esta última (caso contrário o Romanceiro da Inconfidência não seria um poema, seria uma história versíficada). Se você ainda não entendeu, acompanhe o seguinte raciocínio: um jornal conta histórias verdadeiras? Ora, certamente algumas.
E agora eu pergunto: essas histórias são poemas? Claro que não! Por quê? Porque não têm suficientemente ritmo, figuras, versos, enfim, não têm linguagem artística e não inventam aquilo que vai secretamente na cabeça dos protagonistas. E agora a pergunta decisiva: um poema pode contar uma história que aconteceu de fato? Claro que pode. Mas fica apenas nisso? Certamente que não. Porque o autor do poema também inclui fatos que poderiam ter acontecido, também inclui sua emoção criadora, sua musicalidade e imagística, etc.
A transfigtnaçüo simbólica da realidade
Num dos poemas não numerados do livro (“Cenário”), Cecilia, ao falar dos aposentos que haviam pertencido ao poeta Tomás Antonio Gonzaga, nos dá um belíssimo exemplo de transfiguração da realidade histórica em poesia:
A névoa que enche os aposentos
não vem do dia nem da noite:
vem da cegueira: ninguém sente
o ranger da pena, na sombra,
o luzir da seda das véstias,
à luz de altos caules de cera…
Ninguém vê nenhum livro aberto. Ninguém vê mAo nenhuma erguida, com fios de ouro sobre o mundo, para um bordado sem destino, improvável e incompreensível remate de fátuo vestido…
Apenas um cacho de rosas, que nascem pálidas e murchas, habita um desvão solitário, quer falar, porque veio a custo de antigas lágrimas guardadas num chão sem ouro nem diamantes…
Mas inclina-se à tarde, ao vento,
e como um rosto humano morre,
sem dizer nada, inerme e triste,
ao peso do seu pensamento,
— como acontece entre os amantes.
Repare-se que a descrição de Tomás Antonio Gonzaga é a que corresponde ao passado. O que subsiste agora é a sombra do poeta, como se fosse um fantasma. A névoa pode ser a névoa de Vila Rica. Mas a névoa (eis a diferença!) também é uma metáfora da cegueira social.
O mesmo acontece com a evocação do bordado, que Gonzaga fazia para as vestes de sua Manha. A imagem do bordado é muito feliz, porque o ato de bordar ou tecer também pode ser símbolo de intriga da vida ou daquele “destino improvável e incompreensível” que aguardava por Gonzaga (na mitologia grega, as Parcas fiavam o tecido que representava o destino de cada um).
Repare também na transfusão mágica entre o cacho de rosas e lágrimas guardadas, verdadeira evocação da simplicidade da amada, amada que vinha também de um chão igualmente simples, sem a ironia do ouro e dos diamantes. Como vocês estão vendo, todos os sinais históricos (livro aberto, bordado, vestido, ouro, diamantes…) se transubstanciam em simbolos emotivos, poéticos. A derradeira síntese se dá na identificação entre o cacho de rosas com a tristeza dos amantes, configurando uma delicada personificação (= prosopopéia).
A deternu.açüo do Gênero Uterário
Nós mostramos uma das maneiras pelas quais Cecilia sabe transformar a história em poesia. Porém essa relação entre história e poesia ainda tem que ser um pouco mais discutida. Vamos fazer isso do ponto de vista do gênero literário. A que tipo de gênero literário pertence o Romanceiro da Inconfidência? A resposta deve ser feita por etapas. Primeira-
mente, reconhecemos que esse livro não foi concebido em prosa, mas em poesia. Portanto, o gênero mais amplo é: poesia. E depois? Depois se percebe que o livro todo exprime um enredo (= uma história) e, portanto, pertence também ao gênero narrativo.
E depois? Depois percebemos que o poema todo está dominado por um único sentimento que nós poderia-mos chamar de a emoção e a revolta contra os crimes com que a tirania responde aos ideais da liberdade humana. Você pode percorrer os oitenta e cinco poemas do livro (e mais alguns, não numerados) e verificar que tal sentimento ora se manifesta com suavidade, ora com intensidade.
Portanto, se um mesmo sentimento domina todas as partes e variações do poema, nós podemos concluir que esse poema é lírico (se fosse épico, haveria muitas mudanças de emoção, de tom, de finalidade, etc.). Sabemos até agora que a classificação genérica do Romanceiro é: poesia lírico-narrativa.
Mas o lirismo do Romanceiro da Inconfidência ainda apresenta um problema. É que um poema lírico costuma tirar toda a sua substância (= seu miolo) do fundo d’alma do poeta. É como se esse fundo d’alma fosse uma semente e o poema todo fosse a planta em que a semente se transfigurasse. Ora, não éexatamente isso o que acontece no Romanceiro da Inconfidência.
Por quê? Porque a substância do Romanceiro procede em grande parte do quadro trágico da própria história colonial brasileira. Isso quer dizer que, de certa forma, Cecilia encontrou um quadro de sentimentos praticamente pronto. Não estou dizendo que o trabalho dela ficou fácil. Pode ter sido até mais difícil por causa disso.
Por isso mesmo, ou seja, pelo fato de ter encontrado um quadro praticamente pronto, Cecflia teve de ser discreta, não teve a liberdade subletiva de que dispunha em livros anteriores, Então ela vai aproveitar o sentimento trágico que já estava inscrito na própria história, e que já nos emocionava muito antes de Cecilia ter escrito seu poema. Portanto, a veracidade histórica é muito importante.
Isso explica também por que nesse livro Cecilia não pôde dar os vôos pessoais de costume, não pôde praticar seu simbolismo à rédea solta. Portanto, o lirismo de Cecilia dependeu muito mais da emoção, da música e da pintura do que da subjetividade e da invenção. À emoção, à música e à pintura é que se deve o lirismo do Romanceiro da Inconfidência. Vejam como a presença da história real é, às vezes, determinante num poema.
O Romanceiro da Inconfidência também possui um importante elemento épico. Toda epopéia éconstituída de material mitológico e/ou histórico, que pode ser aumentado ou diminuído, de acordo com os critérios do poeta. Cecilia, por exemplo, escreveu 85 poemas. Mas poderia ter escrito a mesma obra com 40 ou com 200 poemas. Essa elasticidade ou expansibihidade da épica foi pela primeira vez formulada pelo crítico (e grande poeta) alemão Schiller (daí, a “Lei de Schihler”).
A fonna do poema
Já vimos que o Romanceiro é do gênero poético, lírico-narrativo e que ainda contém elementos épicos. Mas a coisa ainda não termina aí. Por quê? Porque também é importante considerar qual a origem histórica dessa trindade (poesia + lirismo + narrativa) que veio a receber o nome de romanceiro.
Um romanceiro é um conjunto de romances. A palavra romance, em sua origem medieval — e sobretudo hispânica — significava (entre outras coisas) poema narrativo de tons líricos. Mas, a partir do século XVII, a palavra romance também começou a designar narrativas em prosa, e é neste sentido que o termo émais conhecido hoje.
Cuidado com as confusões: Cecilia Meireles elaborou romances no sentido lírico e medievalesco que esse termo teve. Quem fez romance no sentido moderno do termo é Jorge Amado, Gracihiano Ramos, etc. Estes escreveram em prosa.
Esclarecido isso, vejamos mais alguns aspectos do gênero literário do Romanceiro de Cecilia. Nós dissemos que o eu-lírico do Romanceiro encontrou já pronto um sentimento e um drama. Dissemos que esse eu-lírico não se poderia envolver em aventuras subjetivas, porque sua matéria, afinal, sempre pertenceu à objetividade histórica. O lirismo de Cecilia está na emoção, na dor, na revolta, bem como na transfiguração poética dos ambientes e sugestões históricas.
A presença do trágico
Por vezes, esse lamento de Cecilia parece materiahizaro próprio lamento da machucada consciência brasileira. É como se, mediunicamente, o povo passasse a falar pela voz do poeta, reconhecer no poeta o seu próprio ressentimento popular. Qra, no grande teatro grego de Ésquilo, Sófocles, Eurípides — teatro chamado trágico — a voz do povo era representada por um coro, isto é, por um grupo de atores que cantava ou declamava em uníssono, coisa que emprestava um clima de ansiedade e desespero aos acontecimentos que estavam para se precipitar no palco.
O coro, portanto, era um dos elementos da tragédia. Ele interrogava as personagens principais, Óu lhes dava advertências, conselhos. Representava õpovo. A tragédia, no seu conjunto, é um drama em que se representa a desgraça de um herói, geralmente uma desgraça que vem contra o seu valor, uma desgraça determinada pela fatalidade, ou pelo acaso, ou pela prepotência ou pelo castigo mandado pelos deuses. É daí que nós podemos concluir que se pode também aplicar ao Romanceiro a classificação de romance lírico-trágico-narrativo, dado que Tira-dentes foi de fato um herói sobre o qual desabaram
as mais ínju~tas calamidades. Como também podemos dizer que a voz de Cecilia muitas vezes se funde com o anonimato do coro, como que para indicar um clamor não-pessoal, vindo da própria alma da justiça. Essa voz coral se mostra mais nos momentos em que os versos se tomam interrogativos ou exclamativos. Um bom exemplo está nestas apóstrofes de medo e desesperança:
Ai, terras negras d’África,
portos de desespero…
— quem parte, lá vai cativo;
— quem chega, vem por desterro.
(Ai, terras negras d’África!
ai, litoral dos medos…)
(Aqui falece a auddcia,
finda qualquer apelo…)
Ai, terras negras d’África, selva de pesadelos!
Os presos lutam com os sonhos como entre curvos espelhos…
(Ai, terras negras d’África,
noite grossa de enredos…)
Rolam de longe lágrimas para o horizonte negro:
Saudade — pena de morte
para cumprir-se em degredo.
(Rolam de longe lágrimas…
Quereis saber seu peso?)
Aí, terras negras d’África, céu de angústia e segredo:
lale de sombra caída
sobre o suspiro dos presos!
(Romance LXVII ou Da África dos Setecentos.)
Como se percebe, aqui o anonimato da voz se abre para um quadro de expectativa medonha. Nós dissemos que o traço lírico do Romanceiro está na continuidade de um lamento que se espraia através de todas as variações. Ora, as variações são tonais, descritivas, narrativas, dramáticas, etc.
Essas variações, em última instância, são responsáveis pela vivacidade do poema, elas procuram neutralizar qualquer monotonia vinda de outras partes do poema. Haveria momentos alegres, no Romanceiro? Se houvesse, isto seria incoerência, inverossimilhança.
O que ocorre, por vezes, é uma certa nostalgia das coisas boas ou belas que a cultura mineradora pode ter tido. São instantes em que o lamento se retrai e passa a abrir passagem para uma espécie de nostalgia cultural, compreensível em quem vive num mundo atomizado e selvagem, como esse mundo do século presente, em que viveu Cecilia. De tal nostalgia faz parte também uma certa inclinação pela cultura da época barroca.
Cecilia foi, como se disse, um poeta de tons simbolistas,e os simbolistas sempre tiveram muita simpatia pelos arabescos e tensões barrocas, com seu fusionismo, suas cores quentes, seu ardor expressivo. No poema que segue estão presentes algumas dessas sugestões, associadas a outras, já mais afinadas com o pastoralismo árcade.
É bom lembrar, aliás, que o Arcadismo mineiro, tão envolvido com os episódios da Inconfidência, é em grande parte abarrocado, como testemunha a poesia de Cláudio Manuel da Costa e a estatuária do Aleijadinho. Lembremos um poema em que Cecilia se mostra não apenas saudosa, mas verdadeiramente encantada com a simplicidade sofisticada da cultura da mineração:
Onde, o gado que pascia e onde, os campos, e onde, as searas? Onde, a maçã reluzente, ao claro sol que a dourava? Onde, as crespas águas finas, cheias de antigas palavras? Onde, o trigo? Onde, o centeio, na planície devastada?
Onde, o girassol redondo que nas cercas se inclinava? Mesmo as pedras das montanhas parecem podres e gastas. As casas estão caindo, muito tristes, abraçadas. As cores estão chorando suas paredes tão fracas, e as portas sem dobradiças, e as lanelas sem vidraças.
Já desprendidos do tempo, assomam pelas sacadas que oscilam soltas ao vento, velhos de nublosas barbas. Não se sabe se estão vivos, ou se apenas são fantasmas. Já são pessoas sem nome, quase sem corpo nem alma. As ruas vão-se .arrastando, extremamente cansadas, com suas saias escuras todas de lama, na barra. Ai, que lenta morte, a sua, lenta, deserta e humilhada… (Um céu de azul silencioso muito longe bate as asas.)
Onde, os canteiros de flores e as fontes que os refrescavam? Onde as donas que subiam, para a missa, estas escadas? Onde, os cavalos que vinham por essas verdes estradas? Onde, o Vigário Toledo com seus vários camaradas? E as cadeiras de baiúna,
Que se viam nesta sala?
E os seus brilhantes damascos,
de ramagens encarnadas?
Onde, as festas? Onde, os vinhos?
Onde, as temerárias falas?
“Qual de nós vai ser Rainha?” “E qual de nós vai ser Papa?” Onde, o brilho dos fagotes? Onde, as famosas bravatas? Onde, os lábios que sorriam? Onde, os olhos que miravam as pinturas destes tetos, agora quase apagadas? Dona Bárbara Eliodora, Falai!… (Quem vos escutara!) Dizei-me, do Norte Estrela, onde assistem vossas mágoas!
Vinde, coronéis, doutores, com vossas finas casacas, respirai! — que lá vai longe a vossa vida passada. Falai de leis e de versos e de pastores da Arcádia!
Mas que fizeram das mesas onde outrora se iogava? Livros de França e Inglaterra, por onde será que os guardam?
Quem falou de povos livres?
Quem falou de gente escrava?
A Gazeta de Lisboa
pelo vento foi rasgada.
Cantai, pássaros da sombra, sobre as esvaídas lavras! Cantai, que a noite se apressa pelas montanhas esparsas, e acendem os vaga-lumes suas leves luminárias, para imponderáveis festas nas solidões desdobradas.
Onde, ó santos, vossos olhos, por esta igrela encantada, com paredes de ouro puro e longas franlas de lágrimas? (era de seda vermelha o sobrecéu que o velava:
no seu catre com pinturas, de cabeleira dourada, dormia o Padre Tokdo…
A mesma fonte cantava.
O céu tinha a mesma lua
— grande coroa de prata.
Há dois séculos dormia.
Há dois séculos sonhava…
Olhos de ler o Evangelho, pelas minas se alongavam; mãos de tocar sacriftcios desciam pelas gupiaras… Rios de ouro e de diamante de seus ombros deslizavam…
— Que era paulista soberbo, paulista de grande raça, mação, conforme o seu tempo, e a alegoria pintara das leis dos Cinco Sentidos nos tetos de sua casa… Dormia o Padre Toledo…
— Que negros vultos cortaram
seus grandes sonhos altivos,
quando neles cavalgava,
de cruz de Cristo no peito
e armas debaixo da capa?
Nos seus altares, os santos, pensativos, o esperavam.)
Onde estão seus vastos sonhos, ó cidade abandonada?
De onde vinham? Para onde iam? Por onde foi que passaram?
(“Fala à Comarca do Rio das Mortes”.)
Repare que a primeira estrofe é quase inteiramente absorvida pela evocação bucólica, que abrange o gado, bem como a exposição dos frutos da terra. Esse é um topos ou topo (= lugar comum) costumeiramente chamado de geórgico, pois seu maior cultor foi o grande poeta latino Virgílio, autor das Bucólicas e das Geórgicas.
A inclusão desse tema não é excessiva. Cecilia está fazendo um poema longo, e os poemas longos, de temática histórica e cultural, costumam desenvolver uma espécie de catálogo descritivo das atividades sociais.
A segunda estrofe mostra o poeta ainda envolvido com evocações fantasmais e culmina com o topos do Ubi Troia fuit (= onde outrora existiu Tróia; Tróia funciona como metonímia de toda grande cidade que perece ou desaparece). Note-se também o detalhe contrastante do azul do céu, reimpondo a cor e a indiferença da natureza promissora.
A terceira estrofe repete elementos das duas anteriores e prepara a entrada de uma figura histórica, o Vigario Toledo. A quarta estrofe contém dialogismo (evocação de diálogos, frases soltas), bem como a alusão à sofisticada música e à pintura que se fez na época, para culminar com a grande expressão lírica de Bárbara Eliodora.
E, assim por diante, vamos tendo a evocação da literatura liberal da época, etc. No final, a evocação religiosa. Tudo isso constitui um catálogo de temas intimamente fundidos com o espírito nostálgico e narrativo do Romanceiro.
Mais uma vez nós vemos que a autora não trabalha com conceitos, reflexões, que pediriam uma sintaxe mais subordínativa e complicada. Ao contrário, as evocações ímagéticas se vão sucedendo de acordo com um andamento sintaticamente coordenativo.
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