Em uma quadra das que serviam de aposentos reais no Mosteiro da Batalha, à roda de um bufete de carvalho de lavor antigo, cujos pés, torneados em linha espiral, eram travados por uma espécie de escabelo, que pelos topos se embebia neles, estavam assentadas várias personagens daquelas com quem o leitor já tratou nos antecedentes capítulos. Eram estas D. João I, Frei Lourenço Lampreia e o procurador Frei Joane.
El-rei estava à cabeceira da mesa, e no topo fronteiro o prior, tendo à sua esquerda Frei Joane. Além destes, outros indivíduos aí estavam, que as pessoas lidas nas crónicas deste reino também conhecerão: tais eram os doutores João das Regras e Martim de Océm, do conselho de el-rei, cavaleiros mui graves e autorizados, e, afora eles, mais alguns fidalgos que D. João I particularmente estimavam. Atrás da cadeira de el-rei, um pajem esperava, em pé, as ordens de seu real senhor. O quadrante do terrado contíguo apontava meio-dia.
Em cima do bufete estava estendido um grande rolo de pergaminho, no qual todos os olhos dos circunstantes se fitavam: era a traça ou desenho do mosteiro que delineara mestre Afonso Domingues, onde, além dos prospectos gerais do edifício, iluminados primorosamente, se viam todos os cortes e alçados de cada uma das partes dessa complicada e maravilhosa fábrica. El-rei tinha a mão estendida e os dedos sobre o risco da casa capitular, ao passo que falava com o prior:
– Parece impossível isso; porque natural desejo é de todos os homens alcançarem repouso e pão na velhice, e não vejo razão para mestre Afonso se doer da mercê que lhe fiz.
– Pois a conversação que vos relatei, tive-a com ele ainda ontem, pouco antes de vossa mercê aqui chegar.
– E como vai David Ouguet? – perguntou el-rei.
– Com grande melhoria – respondeu o prior. – Dormiu bom espaço e acordou em seu juízo. Contou-me que, entrando ontem após nós na Casa do Capítulo e afirmando a vista na abóbada, conhecera que tinha gemido e estava a ponto de desabar; que sentira apertar-se-lhe o coração e que, com a sua aflição, correra pela crasta fora, como doido; que no céu se lhe afigurava um relampaguear incessante e medonho; que via… nem ele sabe o que via, o pobre homem. Depois disso, diz que perdera o tino, e de nada mais se recorda.
– Nem dos exorcismos? – perguntou em meia voz Martim de Océm, com um sorriso malicioso.
– Nem dos exorcismos – retrucou Frei Lourenço no mesmo tom, mas subindo-lhe ao rosto a vermelhidão da cólera. – A propósito, doutor. Dizem-me que Anequim é morto, e que el-rei proveu o cargo em um dos de seu conselho. Seria verdadeira esta mercê singular?
E o frade media o letrado de alto a baixo, com os olhos irritados. Este preparava-se para vibrar ao prior uma nova injúria indirecta, naquele jogo de alusões que era as delícias do tempo, quando el-rei acenou ao pajem, dizendo-lhe:
– Álvaro Vaz de Almada, ide depressa à morada de Afonso Domingues, dizei-lhe que eu quero falar-lhe e guiai-o para aqui. Fazei isso com tento: lembrai-vos de que ele é um antigo cavaleiro, que militou com vosso mui esforçado pai.
O pajem saiu a cumprir o mandado de el-rei.
– Dizeis vós – prosseguiu este, dirigindo-se a João das Regras e a Martim de Océm – que talvez Afonso Domingues se enganasse em supor que era possível fazer uma abóbada tão pouco erguida, como é a que ele traçou para o Capítulo. Não creio eu que tão entendido arquitecto assim se enganasse: mais inclinado estou a persuadir-me de que o lastimoso sucesso de ontem à noite procedesse da grave falta cometida por mestre Ouguet nesta edificação.
– E que falta foi essa, se a vossa mercê apraz dizer-mo? – replicou João das Regras.
– A de não seguir de todo o ponto o desenho de mestre Afonso – tornou el-rei.
– E se a execução de sua traça fosse impossível? – acudiu o doutor.
– Impossível?! – atalhou el-rei. – E não contava ele com levá-la a efeito, se Deus o não tolhesse dos olhos?
– E é disso que mais se dói mestre Afonso – interrompeu o prior. – A sua grande canseira é que ninguém saberá continuar a edificação do mosteiro ou, como ele diz, prosseguir a escritura do seu livro de pedra, porque ninguém é capaz de entender o pensamento que o dirigiu na concepção dele.
– Roncarias e feros são esses próprios de quem foi homem de armas de Nun’Álvares – disse o chanceler João das Regras. – Todos os de sua bandeira são como ele. Porque sabem jogar boas lançadas, têm-se em conta de príncipes dos discretos; e o cego não se esqueceu ainda de que comeu da caldeira do Condestável.
João das Regras, émulo de Nun’Álvares, não perdeu este ensejo de lhe pôr pecha; mas D. João I, que conhecia serem esses dois homens as pedras angulares de seu trono, escutava-os sempre com respeito, salvo quando falavam um do outro; posto que o Condestável, homem mais de obras que de palavras, raras vezes menoscabava os méritos do chanceler, contentando-se com lançar na balança em que João das Regras mostrava o grande peso da sua pena o montante com que ele Nun’Álvares tinha, em cem combates, salvado a pátria do domínio estranho e a cabeça do chanceler das mãos do carrasco, de que não o livrariam nem os graus de doutor de Bolonha, nem os textos das leis romanas.
– Deixai lá o Condestável, que não vem ao intento – disse el-rei –; o que me importa é ouvir mestre Afonso sobre este caso. Quisera antes perder um recontro com castelhanos do que cuidar que o Capítulo de Santa Maria da Vitória ficará em ruínas. Mestre Ouguet com sua arte deixou-lhe vir ao chão a abóbada: se Afonso Domingues for capaz de a tornar a erguer e deixá-la firme, concluirei daí que vale mais o cego que o limpo de vista: e digo-vos que o restituirei ao antigo cargo, ainda que esteja, além de cego, zopo e mouco.
Neste momento entrava o velho arquitecto, agarrado ao braço de Álvaro Vaz de Almada, que o veio guiando para o topo da desmesurada banca de carvalho, à roda da qual se travara o diálogo que acima transcrevemos.
– Dom donzel, onde é que está el-rei? – dizia Afonso Domingues ao pajem, caminhando com passos incertos ao longo do vasto aposento.
D. João I, que ouvira a pergunta, respondeu em vez do pajem:
– Agora nenhum rei está aqui, mas sim o Mestre de Avis, o vosso antigo capitão, nobre cavaleiro de Aljubarrota.
– Beijo-vos as mãos, senhor rei, por vos lembrardes ainda de um velho homem de armas que para nada presta hoje. Vede o que de mim mandais; porque, de vossa ordem, aqui me trouxe este bom donzel.
– Queria ver-vos e falar-vos; que do coração vos estimo, honrado e sabedor arquitecto do Mosteiro de Santa Maria.
– Arquitecto do Mosteiro de Santa Maria, já o não sou: vossa mercê me tirou esse encargo; sabedor, nunca o fui, pelo menos muitos assim o crêem, e alguns o dizem. Dos títulos que me dais só me cabe hoje o de honrado; que esse, mercê de Deus, é meu, e fora infâmia roubá-lo a quem já não pode pegar em montante para defendê-lo.
– Sei, meu bom cavaleiro, que estais mui torvado comigo por dar a outrem o cargo de mestre das obras do mosteiro: nisso cria eu fazer-vos assinalada mercê. Mas, venhamos ao ponto: sabeis que a abóbada do Capítulo desabou ontem à noite?
– Sabia-o, senhor, antes do caso suceder.
– Como é isso possível?
– Porque todos os dias perguntava a alguns desses poucos obreiros portugueses que aí restam como ia a feitura da casa capitular. No desenho dela pusera eu todo o cabedal de meu fraco engenho, e este aposento era a obra-prima da minha imaginação. Por eles soube que a traça primitiva fora alterada e que a juntura das pedras era feita por modo diverso do que eu tinha apontado. Profetizei-lhes então o que havia de acontecer. E – acrescentou o velho, com um sorriso amargo – muito fez já o meu sucessor em por tal arte lhe pôr o remate que não desabasse antes das vinte e quatro horas.
– E tínheis vós por certo que, se vossa traça se houvera seguido, essa desmesurada abóbada não viria a terra?
– Se estes olhos não tivessem feito com que eu fosse posto de banda como uma carta de testamento antiga, que se atira, por inútil, para o fundo de uma arca, a pedra de fecho dessa abóbada não teria de vir esmigalhar-se no pavimento antes de sobre ela pesarem muito séculos; mas os de vosso conselho julgaram que um cego para nada podia prestar.
– Pois, se ousais levar a cabo vosso desenho, eu ordeno que o façais, e desde já vos nomeio de novo mestre das obras do mosteiro, e David Ouguet vos obedecerá.
– Senhor rei – disse o cego, erguendo a fronte, que até ali tivera curvada –, vós tendes um ceptro e uma espada; tendes cavaleiros e besteiros; tendes ouro e poder: Portugal é vosso, e tudo quanto ele contém, salvo a liberdade de vossos vassalos: nesta nada mandais. Não!… vos digo eu: não serei quem torne a erguer essa derrocada abóbada! Os vossos conselheiros julgaram-me incapaz disso: agora eles que a alevantem.
As faces de D. João I tingiram-se do rubor do despeito.
– Lembrai-vos, cavaleiro – disse-lhe –, de que falais com D. João I.
– Cuja coroa – acudiu o cego – lhe foi posta na cabeça por lanças, entre as quais reluzia o ferro da que eu brandia. D. João I é assaz nobre e generoso, para não se esquecer de que nessas lanças estava escrito: os vassalos portugueses são livres.
– Mas – tornou el-rei – os vassalos que desobedecem aos mandados daquele em cuja casa têm acostamento, podem ser privados de sua moradia…
– Se dizeis isso pela que me destes, tirai-ma; que não vo-la pedi eu. Não morrerei de fome; que um velho soldado de Aljubarrota achará sempre quem lhe esmole uma mealha; e quando haja de morrer à míngua de todo humano socorro, bem pouco importa isso a quem vê arrancarem-lhe, nas bordas da sepultura, aquilo por que trabalhou toda a vida: um nome honrado e glorioso.
Dizendo isto, o velho levou a manga do gibão aos olhos baços e embebeu nela uma lágrima mal sustida. El-rei sentiu a piedade coar-lhe no coração comprimido de despeito e dilatar-lho suavemente. Umas das dores de alma que, em vez de a lacerar, a consolam, é sem dúvida a compaixão.
– Vamos, bom cavaleiro – disse el-rei pondo-se em pé –, não haja entre nós doestos. O arquitecto do Mosteiro de Santa Maria vale bem o seu fundador! Houve um dia em que nós ambos fomos pelejadores: eu tornei célebre o meu nome, a consciência mo diz, entre os príncipes do Mundo, porque segui avante por campos de batalha; ela vos dirá, também, que a vossa fama será perpétua, havendo trocado a espada pela pena com que traçastes o desenho do grande monumento da independência e da glória desta terra. Rei dos homens do aceso imaginar, não desprezeis o rei dos melhores cavaleiros, os cavaleiros portugueses!
Também vós fostes um deles; e negar-vos-ei a prosseguir na edificação desta memória, desta tradição de mármore, que há-de recordar aos vindouros a história de nossos feitos? Mestre Afonso Domingues, escutai os ossos de tantos valentes que vos acusam de trairdes a boa e antiga amizade.
Vem de todos os vales e montanhas de Portugal o soído desse queixume de mortos; porque, nas contendas da liberdade, por toda a parte se verteu sangue e foram semeados cadáveres de cavaleiros! Eis, pois: se não perdoais a D. João I uma suposta afronta, perdoai-a ao Mestre de Avis, ao vosso antigo capitão, que, em nome da gente portuguesa, vos cita para o tribunal da posteridade, se refusais consagrar outra vez à pátria vosso maravilhoso engenho, e que vos abraça, como antigo irmão nos combates, porque, certo, crê que não querereis perder na vossa velhice o nome de bom e honrado português.
El-rei parecia grandemente comovido, e, talvez involuntariamente, lançou um braço ao redor do pescoço do cego, que soluçava e tremia sem soltar uma só palavra.
Houve uma longa pausa. Todos se tinham posto em pé quando el-rei se erguera e esperavam ansiosos o que diria o velho. Finalmente este rompeu o silêncio.
– Vencestes, senhor rei, vencestes!… A abóbada da casa capitular não ficará por terra. Oh meu Mosteiro da Batalha, sonho querido de quinze anos de vida entregues a cogitações, a mais formosa das tuas imagens será realizada, será duradoura, como a pedra em que vou estampá-la!
Senhor rei, as nossas almas entendem-se: as únicas palavras harmoniosas e inteiramente suaves que tenho ouvido há muitos anos, são as que vos saíram da boca: só D. João I compreende Afonso Domingues; porque só ele compreende a valia destas duas palavras formosíssimas, palavras de anjos: pátria e glória.
A passada injúria, a vossos conselheiros a atribuí sempre, que não a vós, posto que de vós, que éreis rei, me queixasse; varrê-la-ei da memória, como o entalhador varre as lascas e a pedra moída pelo cinzel de cima do vulto que entalhou em gárgula de cimalha rendada. Que me restituam os meus oficiais e obreiros portugueses; que português sou eu, portuguesa a minha obra! De hoje a quatro meses podeis voltar aqui, senhor rei, e ou eu morrerei ou a casa capitular da Batalha estará firme, como é firme a minha crença na imortalidade e na glória.
El-rei apertou então entre os braços o bom do cego, que procurava ajoelhar a seus pés. Era a atracção de duas almas sublimes, que voavam uma para a outra. Por fim, D. João I fez um sinal ao pajem, que se aproximou:
– Álvaro Vaz, acompanhai este nobre cavaleiro a sua pousada. E vós, mestre mui sabedor, ide repousar: dentro de quinze dias vossos antigos oficiais terão voltado de Guimarães para cumprirem o que mandardes. Mui devoto padre-prior – continuou el-rei, voltando-se para Frei Lourenço –, entendei que de ora avante Afonso Domingues, cavaleiro de minha casa, torna a ser mestre das obras do Mosteiro de Santa Maria da Vitória, enquanto assim lhe aprouver.
O prior fez uma profunda reverência.
A alegria tinha tolhido a voz do arquitecto: diante de toda a corte el-rei o havia desafrontado, e já, sem desdouro, podia aceitar o encargo de que o tinham despojado. Com passos incertos, e seguro ao braço do pajem, saiu do aposento, feita vénia a el-rei.
Este deu imediatamente ordem para a partida. Quando todos iam saindo, o prior chegou-se ao velho chanceler e disse-lhe em tom submisso:
– Doutor Johannes a Regulis, espero que narreis fielmente à rainha o que sucedeu e a certifiqueis de quanto me custa ver tirada a régua magistral a mestre Ouguet…
– Foi – tornou o político discípulo de Bártolo – mais uma façanha de D. João I: começou por brigar com um louco, e acabou abraçando-o, por lhe ver derramar uma lágrima. Bem trabalho por fazer do Mestre de Avis um rei; mas sai-me sempre cavaleiro andante. Não lhe sucedera isto, se, em vez de passar a mocidade em pelejas, a houvera passado a estudar em Bolonha.
Tenho-lhe dito mil vezes que é preciso lisonjear os ingleses porque carecemos deles: a tudo me responde com dizer que, com Deus e o próprio montante, tem em nada Castela; todavia a gente inglesa ufanava-se de ser David Ouguet o mestre desta edificação. E que importava que ela fosse mais ou menos primorosa, a troco de contentarmos os que connosco estão liados? Quanto a vós, reverendo prior, ficai descansado; tudo fia a rainha de vossa prudência, que é muita, posto que não vistes Bolonha. Vamos, reverendíssimo.
A Corte já tinha saído: os dois velhos seguiram-na ao longo daquelas arcadas, conversando um com o outro em voz baixa.
V – O VOTO FATAL
Rica de galas, a Primavera tinha vestido os campos da Estremadura do viço de suas flores: a madressilva, a rosa agreste, o rosmaninho e toda a casta de boninas teciam um tapete odorífero e imenso, por charnecas, cômoros e sapais e pelo chão das matas e florestas, que agitavam as frontes sonolentas com a brisa de manhã puríssima, mostrando aos olhos um baloiçar de verdura compassado com o das searas rasteiras, que, mais longe, pelas veigas e outeiros, ondeavam suavemente.
Eram 7 de Maio da era de 1439 ou, como os letrados diziam, do ano da Redenção 1401. Quatro meses certos se contavam nesse dia, depois daquele em que, numa das quadras do aposento real no Mosteiro da Batalha, se passara a cena que no antecedente capítulo narrámos e que extraímos do famoso manuscrito mencionado no capítulo II, com aquela pontualidade e verdade com que o grande cronista Frei Bernardo de Brito citava só documentos inegáveis e autores certíssimos, e com aquela imparcialidade e exacção com que o filósofo de Ferney referia e avaliava os factos em que podia interessar a religião cristã.
Assistiu o leitor à promessa que mestre Afonso Domingues fez a D. João I de que dentro de quatro meses lhe daria posto o remate na abóbada da casa capitular de Santa Maria da Vitória, e lembrado estará de como el-rei lhe prometera, também, mandar ir de Guimarães todos os oficiais portugueses que, despedidos da Batalha por mestre Ouguet, como menos habilidosos que os estrangeiros, haviam sido mandados para a obra, posto que grandiosa, menos importante, de Santa Maria da Oliveira, hoje desaportuguesada e caiada e dourada e mutilada pelo mais bárbaro abuso da riqueza e da ignorância clerical.
A palavra do Mestre de Avis não voltara atrás, não por ser palavra de rei, mas por ser palavra de cavaleiro daqueles tempos, em que tão nobres afectos e instintos havia nos corações de nossos avós que de bom grado lhes devemos perdoar a rudeza. Tendo partido de Alcobaça para Guimarães, onde nesse ano se ajuntavam cortes, apenas aí chegara tinha mandado partir para Santa Maria da Vitória os oficiais e obreiros mais entendidos, que vieram apresentar-se a mestre Afonso.
Este, resolvido, também, a cumprir o prometido, metera mãos à obra. O Capítulo foi desentulhado: aproveitaram-se as pedras da primeira edificação que era possível aproveitar, lavraram-se outras de novo, armaram-se os simples e, muito antes do dia aprazado, o fecho ou remate da abóbada repousava no seu lugar.
Durante estes quatro meses os sucessos políticos tinham trazido D. João I a Santarém, onde se fizera prestes com bom número de lanças, besteiras e peões para ir ajuntar-se com o Condestável, e entrarem ambos por Castela, cuja guerra tinha recomeçado, por se haverem acabado as tréguas.
Para esta entrada se aparelhara el-rei com uma lustrosa companhia de seus cavaleiros e, caminhando pela margem direita do Tejo, acampara junto a Tancos, onde se havia de construir uma ponte de barcas, para passar o exército e seguir avante até o Crato, que era o lugar aprazado com o Condestável, para juntos irem dar sobre Alcântara.
Em Vale de Tancos estava assentado o arraial da hoste de el-rei: os petintais que tinham vindo de Lisboa trabalhavam na ponte de barcas que se devia lançar sobre o Tejo; os besteiros alimpavam suas bestas e folgavam em lutas e jogos; os cavaleiros corriam pontas, atiravam ao tavolado, monteavam ou matavam o tempo em banquetes e beberronias.
Tinham chegado àquele sítio a 5 de Maio, e no dia seguinte el-rei partira aferradamente para a Batalha, porque não se esquecera de que os quatro meses que pedira Afonso Domingues para alevantar a abóbada eram passados, e fora avisado por Frei Lourenço de que a obra estava acabada, mas que o arquitecto não quisera tirar os simples senão na presença de el-rei.
Antes de partir de Lisboa, D. João I mandara sair dos cárceres em que jaziam bom número de criminosos e de cativos castelhanos, que, com grande pasmo dos povos, e rodeados por uma grossa manga de besteiros, tomaram o caminho da Batalha, sem que ninguém aventasse o motivo disto.
Todavia, ele era óbvio: el-rei pensou que, assim como a abóbada do Capítulo desabara, da primeira vez, passadas vinte e quatro horas depois de desamparada, assim podia agora derrocar-se em cima dos obreiros, no momento de lhe tirarem os prumos e traveses sobre que fora edificada.
Solícito pela vida de seus vassalos, parente do povo por sua mãe, e crendo por isso que a morte de um popular também tinha seu trance de agonia e que lágrimas de órfãos pobres eram tão amargas ou, porventura, mais que as de infantes e senhores, não quis que se arriscassem senão vidas condenadas, ou pela guerra ou pelos tribunais, e que, naquela, se tinham remido pela covardia e, nestes, pela piedade ou, antes, pelo esquecimento dos juízes.
E se da primeira vez lhe não acorrera esta ideia, fora porque, também, na memória de obreiros portugueses não havia lembrança de ter desabado uma abóbada apenas construída.
Seguido só por dois pajens, D. João I atravessou a vila de Ourém pelas horas mortas do quarto de modorra, e antes do meio-dia apeou-se à portaria do mosteiro.
Os oficiais que trabalhavam em vários lavores, pelos telheiros e casas ao redor do edifício, viram passar aquele cavaleiro e os dois pajens, mas não o conheceram: D. João I vinha coberto de todas as peças e, ao galgar o ginete pelo outeiro abaixo, tinha descido a viseira.
– Benedicite! – dizia el-rei, batendo devagarinho à porta da cela de Frei Lourenço.
– Pax vobis, domine! – respondeu o prior, que logo reconheceu el-rei e veio abrir a porta.
– Não vos incomodeis, reverendíssimo – disse D. João, entrando na cela e sentando-se em um tamborete –, deixai-me resfolegar um pouco e dai-me uma vez de vinho.
– Não vos esperava tão de salto – tornou Frei Lourenço; e, abrindo um armário, tirou dele uma borracha e um canjirão de madeira, que encheu de vinho e, pegando com a esquerda em uma escudela de barro de Estremoz, cheia de uma espécie de bolo feito de mel, ovos e flor de farinha, apresentou a el-rei aquela colação.
– Excelente almoço – dizia el-rei, descalçando o guante ferrado e cravando a espaços os dedos dentro da escudela, donde tirava bocados do bolo, que ajudava com alentados beijos dados no canjirão. Depois que cessou de comer, limpando a mão ao forro do tonelete, pôs-se em pé, enquanto Frei Lourenço guardava os despojos daquela batalha.
– Bofé – disse D. João I, rindo – que não ando a meu talante, senão com o arnês às costas! Cada vez que o visto, parece-me que torno à mocidade e que sou o Mestre de Avis ou, antes, o simples cavaleiro que, confiado só em Deus, corria solto pelo mundo, monteando edomas inteiras, e tendo sobre a consciência só os pecados de homem e não os escrúpulos de rei.
– E então – atalhou o prior – o vosso confessor Frei Lourenço era um pobre frade, cujos únicos cuidados se encerravam em saber as horas do coro e em ler as sagradas escrituras, porém que hoje tem de velar muitas noites, pensando no modo de não deixar afrouxar a disciplina e boa governança de tão alteroso mosteiro. Mas, segundo vosso recado, que ontem recebi, vindes para assistir ao tirar dos simples da mui famosa abóbada, o que mestre Domingues aporfia em só fazer perante vós?
– A isso vim, porém de espaço; que não será nestes cinco dias que esteja pronta a ponte de barcas que mandei lançar no Tejo, para passar minha hoste. Durante eles, com vossos mui religiosos frades me aparelharei para a guerra, entesourando orações e recebendo absolvição de meus erros.
– Os príncipes pios – acudiu o prior, com gesto de compunção – são sempre ajudados de Deus, principalmente contra hereges e cismáticos, como os perros dos Castelhanos, que a Virgem Maria da Vitória confunda nos infernos.
– Ámen! – respondeu devotamente el-rei.
– Avisarei, pois, mestre Afonso de vossa vinda, para que ponha tudo em ordenança de se tirarem os simples. Pediu-me que o mandasse chamar apenas fôsseis chegado.
Frei Lourenço saiu e, daí a pouco, voltou acompanhado do arquitecto, que um rapaz guiava pela mão.
– Guarde-vos Deus, mestre Afonso Domingues! – disse el-rei, vendo entrar o cego. – Aqui me tendes para ver acabada a feitura da mirífica abóbada do Capítulo de Santa Maria, cujos simples não quisestes tirar senão em minha presença.
– Beijo-vo-las, senhor rei, pela mercê: dois votos fiz, se levasse a cabo esta feitura; era esse um deles…
– E o outro? – atalhou el-rei.
– O outro, dir-vo-lo-ei em breve; mas, por ora, permiti que para mim o guarde.
– São negócios de consciência – acudiu o prior. – El-rei não quer, por certo, fazer-vos quebrar vosso segredo.
D. João I fez um sinal de assentimento ao parecer do seu antigo padre espiritual.
El-rei, o prior e o arquitecto ainda se demoraram um pedaço, falando acerca da obra e do que cumpria fazer no prosseguimento dela; mas o cego dissera o que quer que fora, em voz baixa, ao rapaz que o acompanhava, o qual saíra imediatamente, e que só voltou quando os três acabavam a conversação.
– Fernão de Évora – disse o cego, sentindo-o outra vez ao pé de si –, fizeste o que te ordenei, e deste a teu tio Martim Vasques o meu recado?
– Senhor, sim! Envia-vos ele a dizer que tudo está prestes.
– Então vamos a ver se desta feita temos mais perdurável abóbada.
Isto dizia el-rei, saindo da cela de Frei Lourenço e seguindo ao longo do claustro. Já a este tempo se tinha espalhado no mosteiro a nova da sua chegada, e os frades começavam de ajuntar-se para o cortejarem. Do mosteiro rompera a notícia, espalhando-se pela povoação, aonde concorrera muita gente dos arredores, principalmente de Aljubarrota, por ser dia de mercado: de modo que, quando el-rei desceu à crasta, já ali se achavam apinhados homens e mulheres que queriam vê-lo e, ainda mais, saber se desta vez a abóbada vinha ao chão, para terem que contar aos vizinhos e vizinhas da sua terra.
As portas da Casa do Capítulo estavam abertas: via-se dentro dela tal máquina de prumos, traveses, andaimes, cabrestantes, escadas, que bem se pudera comparar a composição daqueles simples à fábrica do mais delicado relógio. À porta que dava para a crasta estava um homem em pé, que desbarretou apenas viu el-rei, a cuja direita vinha o arquitecto, seguido por Frei Lourenço e por outros frades.
O pequeno Fernão de Évora disse algumas palavras a Afonso Domingues, o qual lhe respondeu em voz baixa. Então o rapaz acenou ao homem desbarretado, que se chegou timidamente ao cego. Era um mancebo, que mostrava ter de idade, ao mais, vinte e cinco anos; de rosto comprido, tez queimada, nariz aquilino, olhos pequenos e vivos. Chegando-se ao cego, este o tomou pela mão e, voltando-se para el-rei, disse:
– Aqui tendes, senhor, a Martim Vasques, o melhor oficial de pedraria que eu conheço; o homem que, com mais alguns anos de experiência, será capaz de continuar dignamente a série dos arquitectos portugueses.
– E debaixo de meu especial amparo estará Martim Vasques – respondeu el-rei –, que por honrado me tenho com haver em meus senhorios homens que vos imitem.
Ainda bem não eram acabadas estas palavras, sentiu-se um sussurro entre o povo, que girava livremente pela crasta e que se enfileirou aos lados: chegava a gente que devia tirar os simples.
Entre duas alas de besteiros, vinha um bom número de homens, magros, pálidos, rotos e descalços; o porte de alguns era altivo, e em seus farrapos se divisava a razão disso: eram besteiros castelhanos que em diversos recontros e pelejas tinham caído nas mãos dos portugueses.
As guerras entre Portugal e Castela assemelhavam-se às guerras civis de hoje: para vencidos não havia nem caridade, nem justiça, nem humanidade: ser metido em ferros era então uma ventura para o pobre prisioneiro; porque os mais deles morriam assassinados pelo povo desenfreado, em vingança dos maus tratos que em Castela padeciam os cativos portugueses. Com os castelhanos vinham de envolta vários criminosos condenados à morte por suas malfeitorias.
– Misericórdia! – bradou toda aquela multidão, ao passar por el-rei: e caíram de bruços sobre as lajes do pavimento.
– Convosco a tenho, mesquinha gente – disse el-rei comovido. – Se tirardes os simples, que vedes acolá, e a abóbada não desabar sobre vós, soltos e livres sereis. Erguei-vos, e confiai na ciência do grande arquitecto que fez essa mirífica obra. Mandar-vos comprar vossa soltura a custo de tão leve risco, quase que é o mesmo que perdoar-vos.
Os presos ergueram-se; mas a tristeza lhes ficou embebida no coração e espalhada nas faces; o terror fazia-lhes crer que já sentiam ranger e estalar as vigas dos simples e que, às primeiras pancadas, as pedras desconformes da abóbada, desatando-se da imensa volta, os esmagariam, como o pé do quinteiro esmaga a lagarta enrascada na planta viçosa do horto.
Neste momento quatro forçosos obreiros chegaram à porta do Capítulo, trazendo sobre uma paviola uma grande pedra quadrada. Martim Vasques, que já lá estava, gritou ao cego arquitecto:
– Mui sabedor mestre Afonso, que quereis se faça do canto que para aqui mandastes trazer?
– Assentai-o bem debaixo do fecho da abóbada, no meio desse claro, que deixam os prumos centrais dos simples.
Os obreiros fizeram o que o arquitecto mandara; este então voltou-se para el-rei e disse:
– Senhor rei, é chegado o momento de vos declarar meu segundo voto. Pelo corpo e sangue do Redentor jurei que, assentado sobre a dura pedra, debaixo do fecho da abóbada, estaria sem comer nem beber durante três dias, desde o instante em que se tirassem os simples. De cumprir meu voto ninguém poderá mover-me. Se essa abóbada desabar, sepultar-me-á em suas ruínas: nem eu quisera encetar, depois de velho, uma vida desonrada e vergonhosa. Esta é a minha firme resolução.
Dizendo isto, o cego travou com força do braço de Fernão de Évora, e encaminhou-se para a porta do Capítulo.
– Esperai, esperai! – bradou el-rei. – Estais louco, dom cavaleiro? Quem, se vós morrerdes, continuará esta fábrica, tão formosa filha de vosso engenho?
– Mestre Ouguet – tornou o cego, parando. – Não sou tão vil que negue seu saber e habilidade. Se a abóbada desabar segunda vez, ninguém no mundo é capaz de a fechar com uma só volta, e para a firmar sobre uma coluna erguida ao centro, mestre Ouguet o fará. Quanto ao resto do edifício, fazei senhor rei que se prossiga meu desenho: é o que ora vos peço tão-somente.
E o velho e o seu guia sumiram-se por entre as bastas vigas que sustinham as traves dos simples: el-rei, Frei Lourenço e os mais frades ficaram atónitos e calados.
– Que tão honrado mestre corra parelhas no risco com esses perros castelhanos, cousa é que não pode sofrer-se; mas o voto é voto, senão…
Estas palavras partiam da boca de uma gorda velha, cuja tez avermelhada dava indícios de compleição sanguínea e irritável, e que de mãos metidas nas algibeiras, na frente de uma das alas do povo, presenciava o caso.
– Tendes razão, tia Brites de Almeida; e por ser voto me calo eu – acudiu el-rei, voltando-se para a velha. Mas juro a Cristo, que estou espantado de só agora vos ver! Porque me não viestes falar?
– Perdoe-me vossa mercê – replicou a velha. – Eu vim trazer pão à feira, e aí soube da chegada de vossa real senhoria. Corri… se eu correria para vos falar! Mas estes bocas-abertas não me deixaram passar. Abrenúncio! Depois estive a olhar… Parecíeis-me carregado de semblante.
Que é isso? Temos novas voltas com os excomungados Castelhanos? Se assim é, trosquiai-mos outra vez por Aljubarrota, que a pá não se quebrou nos sete que mandei de presente ao diabo, e ainda lá está para o que der e vier.
Soltando estas palavras, a velha tirou as mãos das algibeiras e, cerrando os punhos, ergueu os braços ao ar, com os meneios de quem já brandia a tremebunda e patriótica pá de forno que hoje é glória e brasão da gótica vila de Aljubarrota.
– Podeis dormir descansada, tia Brites – respondeu el-rei, sorrindo-se. – Bem sabeis que sou português e cavaleiro, e a gente de nossa terra é cortês; el-rei de Castela veio visitar-nos várias vezes: agora ando eu na demanda de lhe pagar com usura suas visitações.
Enquanto este diálogo se passava entre o herói de Aljubarrota e a sua poderosa aliada, Martim Vasques tinha posto tudo a ponto; e, dando as suas ordens da porta, as primeiras pancadas de martelo, batendo nos simples, ressoaram pelo âmbito da casa capitular. Fez-se um grande silêncio, e todos os olhos se cravaram em Martim Vasques.
Passada uma hora, aquele montão de vigas, barrotes, tábuas, cambotas, cabrestantes, réguas e travessas tinha passado pela crasta fora em colos de homens, e os presos tinham sido postos em liberdade, com grande raiva da tia Brites, ao ver ir soltos os besteiros castelhanos. Apenas no centro da ampla quadra se via uma pedra, sobre a qual, mudo e com a cabeça pendida para o peito, estava assentado um velho.
A este velho rogava el-rei, rogavam frades, rogava o povo, sem todavia se atreverem a entrar, que saísse dali; mas ele não lhes respondia nada. Desenganados, enfim, foram-se, pouco a pouco, retirando da crasta, onde, ao pôr do Sol, começou a bater o luar de uma formosa noite de Maio.
Três dias se passaram assim. Mestre Afonso, assentado sobre a pedra fria, nem sequer cedera às rogativas de Ana Margarida, que, obrigada pela boa amizade que tinha a seu amo, se atrevera a cruzar os perigosos umbrais do Capítulo, para ver se o movia a tomar alguma refeição. Tudo recusou o cego: a sua resolução era inabalável. Também a abóbada estava firme, como se fora de bronze.
No terceiro dia à tarde, el-rei, que tinha passado o tempo em aparelhar-se para a guerra com actos de piedade, desceu à crasta, acompanhado de Frei Lourenço e de outros frades, e, chegando à porta do Capítulo, viu Martim Vasques e Ana Margarida junto à pedra fria de Afonso Domingues, e este, pálido e com as pálpebras cerradas, encostado nos braços deles.
O mancebo e a velha choravam e soluçavam, sem dizerem palavra.
– Que temos de novo? – perguntou el-rei, chegando à porta e vendo aqueles dois estafermos. – Completam-se ora os três dias de voto: ainda mestre Afonso teimará em estar aqui mais tempo?
– Não senhor – respondeu Martim Vasques, com palavras mal articuladas –, não estará aqui mais tempo; porque o seu corpo é herança da terra; a sua alma repousa com Deus.
– Morto!? – bradaram a uma voz el-rei e Frei Lourenço, e correram para o cadáver do arquitecto, olhando, todavia, primeiro para a abóbada com um gesto de receio.
– Nada temais, senhores – disse Martim Vasques. – As últimas palavras do mestre foram estas: «A abóbada não caiu… a abóbada não cairá!»
O arquitecto, gasto da velhice, não pôde resistir ao jejum absoluto a que se condenara. No momento em que, ajudado por Martim Vasques e Ana Margarida, se quis erguer, pendeu moribundo nos braços deles, e aquele génio de luz mergulhou-se nas trevas do passado.
El-rei derramou algumas lágrimas sobre os restos do bom cavaleiro, e Frei Lourenço rezou em voz baixa uma oração fervente pela alma generosa que, até ao último arranco, escrevera sobre o mármore o hino dos valentes de Aljubarrota.
Na pedra sobre a qual mestre Afonso expirara ordenou el-rei se tirasse, parecido quanto fosse possível retratando-se um cadáver, o vulto do honrado arquitecto, e que esta imagem fosse colocada em um dos ângulos da casa capitular, onde, durante mais de quatro séculos, como as esfinges monumentais do Egipto, tem dado origem às mais desvairadas hipóteses e conjecturas.
À pobre Ana Margarida, que ficava sem arrimo, doou D. João I, também, as casas em que o mestre morava, fazendo-lhe, além disso, assinaladas mercês.
Mestre Ouguet, pelo que o cego dissera a el-rei acerca da sua capacidade para o substituir, e porque, enfim, era estrangeiro, foi logo restituído ao cargo que ocupara, e quando, nos serões do mosteiro, alguém falava nos méritos de Afonso Domingues e na sua desastrada morte, cortava o irlandês a conversação, dizendo com riso amarelo:
– Olhem que foi forte perda!
(1) Perdi o azeite e o trabalho, expressão proverbial.
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